Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

O Tempo Livre
 
Nos tempos modernos ganhou aceitação geral a expressão: O trabalho enobrece o homem, na ideia de que é através do trabalho que garantimos nossas condições materiais de subsistência. Poder prover a própria vida e de seus familiares é de fato uma postura que todos devemos assumir. Isso confere dignidade ao trabalhador.
Esta lógica da dignidade ofertada pelo trabalho sofre desilusões severas no decorrer dos tempos: num momento o trabalhador era servo, noutro, escravo, agora é assalariado. O fundamental aí é que, em geral, a riqueza resultante do esforço do trabalho é desfrutada de forma bem desproporcional, a ponto de gerar os extremos que se conhece. O Mapa da Pobreza e Desigualdade de 2003, elaborado pelo IBGE, anuncia que 32,6% dos municípios brasileiros tinham mais da metade de sua população vivendo na pobreza absoluta.

 A pobreza absoluta é medida a partir de critérios definidos por especialistas que analisam a capacidade de consumo das pessoas, sendo considerada pobre aquela pessoa que não consegue ter acesso a uma cesta alimentar e de bens mínimos necessários a sua sobrevivência – explicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Inspirado nesse universo de sofrimento, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto (1920-1999) escreveu sua poesia épica Morte e Vida Severina:

 
                                                       [...]
                                           E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
 (de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

                                                            [...]


                                                        
Dentro dessa condição de vida severina, outro universo mental é elaborado. E aquilo que parece ser desordem, rebeldia, má vontade, capricho, preguiça, é apenas outro modo de existir, outro mundo social formado dentro do mesmo espaço geográfico e histórico. É como se fosse um bioma no reino humano, a exemplo das populações de organismos da fauna e da flora que interagem entre si e interagem com o seu ambiente físico, mas mantêm suas características específicas. Esses organismos não se misturam: onça é onça, zebra é zebra; jacarandá é jacarandá, abelha é abelha. Para sobreviver, contudo, cada um desses organismos depende, de algum modo, do outro.
O tempo livre nasce dentro desse contexto sociológico da vida ativa dos sujeitos, dentro do trabalho ou fora dele.
Milton de Oliveira Ismael Silva (1905-1978) em seu genial samba Se você jurar aponta uma questão que surge no uso do tempo livre como recusa da ordem social dominante:

 
Se você jurar que me tem amor
Eu posso me regenerar
Mas se é para fingir, mulher
A orgia assim não vou deixar.

 
Nessa qualidade de rejeição da ordem (A orgia assim não vou deixar), o tempo livre transforma o sujeito em malandro, como teoriza o sociólogo Roberto DaMatta (1936 -), em seu texto Carnavais, Malandros e Heróis: “[...] O malandro é um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho [...]”.
O tempo livre deve, no entanto, ser um tempo máximo de autocondicionamento, onde se possa mesmo se implementar novas regras, novos códigos de viver, importando mais o devaneio, ali onde o jogo dos interesses econômicos seja secundário, cedendo espaço ao mundo estético do canto, da dança e da graça do reino das artes, tempo social do compromisso puramente afetivo.
É preciso tomar muito cuidado neste momento da conquista do tempo livre. Atualmente estamos vivendo o mundo do mercado, do consumismo que pode invadir a privacidade do tempo livre e deteriorá-lo, mercantilizá-lo, coisificando-o e empobrecendo-o de significados.
 Façamos de nosso tempo livre um tempo de lazer, um tempo lúdico, do descanso da alma, da paz interior, do riso aberto, como nos convidou Luiz Gonzaga Nascimento Júnior (1945-1991) - Gonzaguinha, em seu canto “O Que É, O Que É? - Viver! / E não ter a vergonha / De ser feliz / Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser / Um eterno aprendiz.”
 
 
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 06/08/2018
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