Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

 
Vidas Lembradas
 
No exercício da realização da vida, cada indivíduo vive e compartilha lutas e sonhos mil.
Um mundo de acontecimentos vai compondo o cenário desse palco onde vivemos e acaba transformando a vida num drama matizado de diferentes feições. Vezes há um lirismo de ter e de poder usar os bens sociais do tempo em sua plenitude, vezes a vida vira tragédia no enfrentamento de muitas dificuldades, na ausência de possibilidades de usufruir de direitos mínimos, anulando esperanças e fazendo o cotidiano ser um castigo perene.
As lembranças da vida formadas nesses cotidianos são inscritas como memórias de um viver, constituem o próprio fundo de nossa identidade individual ou coletiva que se mostra através de nossas experiências e culturas, suportes do que somos.
Essas experiências, essas culturas, esses diferentes modos de exercício de viver, constituídos no passado, revelam-se na diversidade de olhares do presente.
Uma dessas formas de apresentar o passado ao presente é realizada através de textos de historiadores, poetas e escritores de ficção. Todas essas narrativas são almas que se desligam da intimidade dos autores e ganham força ao desvelar sentidos e significados do que somos e do que fazemos, tomando-se como fundamento a vivência dos sujeitos. Para isso, é preciso muita reflexão:
 
Para escrever um único verso, é preciso ter visto muitas cidades,
homens e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir
como  voam os pássaros e saber que movimento fazem as florzinhas
quando se abrem de manhã – (Rainer Maria von Rilke, 1875-1926)
 
Não apenas a história, a poesia e a narrativa de ficção dão conta do que somos ao compor sentimentos que se universalizam. A pintura, a fotografia, a dança e outros feitos artísticos da inteligência do homem também testemunham a nossa trajetória de homens laborando, de homens rezando, conflitando, resistindo, amando. Esses perfis se avultam nos testemunhos validados na ação concreta da construção da casa que nos protegeu, no templo que nos acolheu, na praça que nos divertiu, no cultivo do trabalho que nos possibilitou o pão, e em tantas outras materialidades instituídas nos mistérios, razões e ilusões dessa necessidade do existir!
Essas lembranças ficam guardadas nesse mundo de aparências e transparências, de livros, de construções, de teia de relações. Revelar essas lembranças é contar histórias, é perceber a vida se fazendo naquele instante da inspiração inicial que faz acontecer à ação.
O interesse que se busca é evitar que o tempo não se apague tão depressa das lembranças, garantindo seu efeito dialógico com o presente. É em razão desse ideal que são instituídos lugares de memória: centros históricos, centros de documentação, arquivos, museus, bibliotecas.
Esses espaços não se configuram em lugar de descanso, ali onde a vida ganha serenidade, imobilidade e se contenta em ser vista e admirada. Esses lugares de memória são, antes, denúncias. Eles são gritos penosos.  Brados que querem repercutir. São astuciosas vontades de revelarem o social que um dia contemplou a vida ativa dos sujeitos.
Essa revelação somente poderá acontecer mediante desejo firme de querer saber, porque [...] Se os homens apreendessem imediatamente as conexões, para que serviria a ciência? (Marx a Engel, carta de 27-06-1867).
Mesmo assim, quantas coisas nós esquecemos... E quantas coisas nós não damos conta... E quantos danos nós não criamos por força disso, porque não escutamos a vida, porque não ouvimos a história, como nos aconselhou o filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900): Precisamos da história, mas não como precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da ciência.
Pesquisar, querer saber, revelar o intrincado mundo que se esconde por detrás dos testemunhos preservados nos espaços de memória, é empreender uma jornada longe dos devaneios do repouso. E nisso se contente o andante, porque há um devaneio do homem que anda ao recompor um riso perdido, um sonho irrealizado, inscrevendo na alma um mapa de um passado que se torna seu.
As vidas lembradas se objetivam nesse encontro do presente com o passado. Elas são possibilitadas pela interpretação que o historiador, o poeta, o literato e outros intelectuais fazem a partir da leitura da vida, da leitura de documentos preservados nos lugares de memória.  
Essas vidas vivificam-se através de narrativas e circulam na memória coletiva, permitindo divisar melhor o futuro e, assim, como em repetidas vezes percebe-se, o passado volta a oferecer nova oportunidade ao presente, numa espécie de oferta insistente, em forma de apelo que estimula permanentemente a procura de respostas, na semelhança das expectativas do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em sua poesia Viver:
 
Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa que a vida não alcança?
 
 
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 06/08/2018
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