Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

Memória: Relatos Do Brasil Colônia
 
O Brasil tem suas raízes fincadas no distante processo histórico que fez surgir o mundo português. Somos filhos daqueles tempos primordiais surgidos das ruínas do Império Romano (Século 11). Dessa base longínqua surgiram as transformações políticas e sociais da Europa Ocidental, possibilitando o aparecimento de um modo novo de convivência, os estados nacionais.
Portugal é parte dessas transformações, é uma das expressões daqueles encaminhamentos históricos que incluíram o desenvolvimento de uma burguesia, a expansão do capitalismo e de sua filosofia, tudo seguido de perto pelos interesses católicos de expansão da Fé.
Nessas origens, assentamos as raízes de nossa cultura. Daquelas tradições lusas, estabelecemos os fundamentos que possibilitaram a grandeza de nossas ações históricas, independentemente da fragilidade dos homens e da precariedade das circunstâncias enfrentadas para dominar o espaço “achado”, não obstante a descrição alegórica da Carta de Caminha:
 
Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!
 
A nação brasileira começa a se formar nesse berço gracioso. A expansão capitalista, emoldurada com os traços fortes da fé católica, vai integrando duas civilizações inteiramente distintas, portadoras de ambição capitalista (a portuguesa) e da mansidão desprovida de interesses (a ameríndia). Nesse momento inicial, como na expressão do cronista Nelson Rodrigues (1912-1980), o Brasil não era mais do que uma simples paisagem: “Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem”.
Nosso lar original, essa “[...] terra graciosa, de muito bons ares frescos e temperados...”, ganha uma semelhança com o Jardim do Éden bíblico (Gênesis 2:8). Apoiado nessa base edênica, a visão paradisíaca do passado, capturada por Pero Vaz de Caminha, invadiu nossa alma, submeteu nossa imaginação até o tempo presente. Depois de contemplada por tantos observadores (Américo Vespúcio — Mundus Novus —, Pero de Magalhães Gândavo — História da província Santa Cruz —, Frei Vicente do Salvador — História do Brasil, 1500-1627 — e outros), o historiador Rocha Pita em sua História da América Portuguesa, publicada em 1730, revigora o olhar de Caminha, ao acentuar que esta terra é mesmo um paraíso:
 
Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes; as estrelas são mais benignas e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasça o sol, ou se sepulte, estão sempre claros; as águas, ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoações nos aquedutos, são as mais puras; é enfim o Brasil Terreal Paraíso descoberto, onde tem nascimento e curso os maiores rios; domina salutífero clima; influem benignos astros e respiram auras suavíssimas, que o fazem fértil e povoado de inumeráveis habitadores. (Rocha Pita)
 
Rocha Pita, por sua vez, é revivido no poema “Canção do Exílio”, do poeta Gonçalves Dias (1823-1864), no seu olhar sobre nossas belezas, na exaltação do espaço que herdamos:
 
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

 
Esse encanto, repetidas vezes exaltado, foi, também, imortalizado na canção “Aquarela do Brasil”, letra e música de Ary Barroso (1903-1964):
 
Esse coqueiro que dá coco
Oi! Onde amarro minha rede
Nas noites claras de luar
Por essas fontes murmurantes
Onde eu mato a minha sede
Onde a lua vem brincar
Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil Brasileiro
Terra de samba e pandeiro...

 
Há uma alegria presente na alma nacional brasileira em razão desse nosso envolvimento com os encantos narrados por historiadores, poetas e outros observadores, por isso Machado de Assis (1839-1908) fala de um nativismo, de valorização de nossa cultura, em reação à imposição de uma cultura externa, dominante: “O meu sentimento nativista [...] sempre se doeu desta adoração da natureza. [...] eu não fiz, nem mandei fazer, o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos”.
O “caráter do povo brasileiro” carrega essa sensibilidade traduzida em modos solidário, cordial, artístico, hospitaleiro, alegre, acolhedor, amigo, livre, festivo... Disso bem nos fala o antropólogo Roberto Da Matta (1936), em seu texto “O que faz o brasil, Brasil?”:
 
De fato, a identidade social é algo importante que o conhecer-se a si mesmo através dos outros deixou os livros de filosofia para reconstituir numa busca antropologicamente orientada (...). Posso distinguir-me assim porque me associo intensamente a uma série de atributos especiais e porque com eles e através deles formo uma história: a minha história.
 
Essas considerações ganham confirmação no livro Retrato do Brasil, de Paulo Prado, que traduz um esforço de crítica de nossas formas culturais, que herdamos da experiência colonial:
 
[...] o clima, o homem livre na solidão, o índio sensual, encorajavam e multiplicavam as uniões de pura animalidade (...) o ardor dos temperamentos, a amoralidade dos costumes, a ausência do pudor civilizado (...) eram um convite à vida solta e infrene em que tudo era permitido.
 
A nação brasileira foi se formando dessas raízes e Pero Vaz de Caminha, na configuração do ambiente paradisíaco, não deixou de formular o compromisso maior que até hoje não conseguimos equacionar devidamente, o “salvar esta gente” que aqui vive: “Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”.
O que somos, esse jeito que nos faz ser brasileiro, começa lá longe, lá onde um mundo é só encanto e carrega, ainda hoje, toda aquela esperança de possibilidades grandiosas para uma vida plena, onde o sofrimento seja uma exceção.
O escritor e diplomata mexicano, Carlos Fuentes (1908-2012), em seu texto “O espelho enterrado” ilumina essa esperança:
 
[...] não podemos ser entendidos sem esta consciência intensa do momento em que somos concebidos, filhos de uma mãe anônima, nós próprios desprovidos de nome, mas com inteira consciência do nome dos nossos pais.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
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