Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

A Religiosidade na Carta de Caminha
 
 
O sociólogo Max Weber (1864-1920), em seu método de análise denominado Sociologia Compreensiva, decifra a existência de racionalidade dos fenômenos religiosos. Essa racionalidade pode ser vista a partir da objetividade das ciências ou da subjetividade de sentimentos afetivos, das inspirações artísticas e das construções estéticas imaginadas.
Nessa reflexão, um fato logo se estabelece. A religião sempre teve um papel significativo na organização social do homem. Foi considerando essa ideia que Karl Marx (1818-1883) declarou que a [...] religião não vive no céu, mas sim na terra [...].
Isso importa entender que o mesmo homem envolvido no esforço de sobrevivência, tendo de utilizar bens materiais conseguidos com o [...] suor do próprio rosto [...], é o mesmo homem das práticas sagradas. É o profano e o sagrado em relação direta. Nessa relação, o sagrado por vezes é predominante, por vezes o profano dita as regras, assume a dominância. Essa convivência nem sempre acontece em mar de tranquilidade. Há conflitos e, muitas vezes, há apropriação indébita da virtude do sagrado pelo profano ou vice-versa, os benefícios do profano são assimilados pelo sagrado.
No período em que Portugal dedicava-se as grandes navegações e que aportou nas terras brasílicas em 1500, nesse período, a religiosidade era forte. Portugal tinha seus laços de convivência presos ao catolicismo dominante e em tudo que fazia procurava revestir seus atos e atitudes de valores que apresentavam certo teor religioso. Funcionava uma espécie de “espiritualização” nas navegações portuguesas. Em cada esquadra lá estava o representante da fé. Os primeiros missionários que vieram junto com Pedro Álvares de Cabral (1467-1520) eram franciscanos. A primeira missa nas terras achadas foi celebrada por um frei, Frei Henrique de Coimbra (1465-1532), no dia 26 de abril de 1500, Domingo de Páscoa.
A carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500), assinada em de 1º de maio de 1500 e destinada ao rei D. Manuel I de Portugal (1469-1521), é uma confirmação da dualidade recorrente das navegações portuguesas: temporal e espiritual. O profano e o sagrado se apresentam com clareza na carta de Caminha. Nenhuma novidade nisso, pois, oficialmente, essa era missão de Cabral: catequizar e mercadejar. O ato régio passado a Cabral era decisivo, como bem expressou o texto Décadas da Ásia, de João de Barros (1496-1570): Busquem-se, primeiro, os homens para deles se fazerem bons cristãos. Trate-se, depois, com eles, a melhor maneira de organizar o comércio.
A carta de Caminha é fiel ao regimento régio do começo ao fim.
Já na primeira parte da carta lá está a evocação da religiosidade ao chamar a terra achada de Terra de Vera Cruz:

Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome — o Monte Pascoal e a terra — a Terra da Vera Cruz (Carta de Caminha)

Nos primeiros contatos com a terra e com as pessoas que ali habitavam, vem o espanto português que revela outra sensibilidade com a sua noção de culpa e pecado constituída pela alegoria da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, de Gênesis 3:
 
E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. [...] ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. (Carta de Caminha)

E porque nisso acreditava Caminha e essa era um encargo da navegação, a Carta aponta sugestão para se alcançar:
 
[...] a santa intenção de Vossa Alteza: E, portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem [...] hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé [...].
 
Finalizando a Carta, Caminha, em estado de euforia, tocado pela nova visão do mundo e do homem, em razão da convivência com tipos humanos novos, que ele considera belos, conclama ao Rei: O melhor fruto que nela se pode fazer parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
No entanto, comenta João de Barros em Décadas da Ásia, o pau da cruz iria dar lugar ao pau brasil, quase a profetizar a mudança de uma perspectiva espiritual para uma mercantil. Houve a passagem de um primeiro momento do olhar ingênuo para o olhar do poder. O profano se estabelece e sobrepõe-se ao sagrado.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
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