Encantamento: ideal da arte
Ver e sentir. Sentir é mais amplo do que ver, porque sentir envolve ver e outros níveis de percepção como saborear, ouvir, tocar, auscultar. Encantar-se é uma dessas faces da sensibilidade que ativam valores fundamentais da possibilidade do riso, do contentamento que supera e elimina dores, justificando o prazer de conduzir a vida independentemente dos contratempos da realidade. O espírito que se encanta, como em todo sentir, resulta de uma aprendizagem, envolve-se com o mundo, se desenvolve e se fortalece cultivando-se. Na contemplação daquele que se sabe dono de seu destino, seu gesto de sentir é consciente, é ativo. Nesse sentido, não há passividade em contemplar. O belo que resulta dessa contemplação é a epifania da ordem universal que se busca como reconhecimento da possibilidade da perfeição, aprimorada a cada passo do fazer interessado dos sujeitos. Muitos são, entre nós, os que se encantaram e se encantam vivendo o dia a dia. Do lúdico sonho que festeja nosso descanso, acordamos para viver os embates de cada dia no esforço de ser e de ter. É aí que a vida celebra a criatividade ao fazer surgir os arranjos das invenções que melhor se ajustam à vontade de cada um de nós. Ver esse mundo, sentir esse mundo é viver essas vontades e fazê-las encantadas, prazerosas. A vida resulta desse esforço de maravilhar-se. Traduza-se isso no poder contentar carências, no poder reverter cansaços em vitórias. E onde está o encanto que queremos? Em algum lugar... Na alma talvez. Quando a voz que canta extasia-se, é a alma que se deleita. Quando a poesia nasce, é o mundo que se desvela em cores, formas, harmonias, sensibilidades, tudo desperta. É o belo se mostrando pela arte independentemente dos vícios da finitude, apesar de todas as condições concretas da existência. Nessa missão de embelezar a corporeidade exterior reconhecida na ação, a arte é substância da vida, representação da feição inicial do que somos. Ela, a arte, é uma espécie de princípio e fim do sujeito que se move construindo grandezas, como nas Palavras em Verso do poeta austríaco Karl Kraus (1874 – 1936): “A Origem é o Alvo”. É como se afirmasse que tudo tende a um fim; no trajeto, as metas estabelecidas vão sendo atualizadas a partir das possibilidades de cada tempo e espaço. Ou seja, tudo tende à atualização de sua origem. É uma busca eterna da perfeição. Não é a perfectibilidade infinita do gênero humano que perseguimos quando organizamos o social? Quando defendemos nossas ideias? Nessa possibilidade da perfeição, vê-se aí o ideal da arte: o encantamento. Esse encantamento é percebido nos abraços que se confraternizam, nas lamentações que se evadiram com a presença do riso, no pão de cada dia que se conquistou, na garantia da esperança que se idealizou. Nisso, ver e sentir são a mesma coisa que viver. Viver, assim, é se descobrir querendo, fazendo, sendo, na perspectiva das grandezas para além dos versos, do saber fazer bem, na ideia de que o cotidiano é inventado com mil maneiras de busca. Afinal, o sujeito da ação, na sua maneira de fazer, realiza-se a si mesmo e aos outros, desdobrando-se num encontro intensivo de tal maneira que parece conquistar a riqueza da efervescência que faz a vida humana ser uma forma superior, ao ter consciência de si e responder por sua própria existência. Fazer e contemplar o feito são a face mais doce da ação por deleitar e cristalizar a vida, momentos mais elevados da pessoa. O encantamento está na plenitude dessa ação de fazer e contemplar e, nessa virtude, o contentamento se configura como o ideal da arte, observada a mágica transformadora da presença da ação bondosa: “O amor e a arte não abraçam o que é belo, mas o que justamente com esse abraço se torna belo” (Karl Kraus). Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 20/07/2018
Alterado em 23/07/2018 Copyright © 2018. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |