Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

O Cuidado
 
Nascer e viver.
Ouvir o choro do nascimento daquela vida nova, que vem compartilhar conosco deste nosso mundo, é perceber a presença da esperança e de seu atributo: viver.
Viver simboliza um dever, um compromisso de continuar existindo. Esse compromisso de manter a vida importa dominar os recursos do tempo-espaço onde habitamos, tornando-nos operários criadores desses bens úteis que alimentam e protegem nosso corpo, fazendo-nos artistas desses cantos, dessas sonoridades, dessas pinturas que nutrem nossa alma.
Ainda mais. Desenvolver essa atitude de viver exige reconhecer a outra face, a de conviver. Nisso surge um trajeto essencial da vida que nenhum de nós pode recusar: nascer, viver e conviver. Esse vínculo essencial se constitui numa dimensão originária. Não há uma anterioridade a se considerar. Passamos a ser pessoa a partir dessa dimensão: nascer – viver – conviver. Não há nada mais que se possa fazer, se nascemos o dever de cada um é viver, convivendo.
E viver é caminhar, agir, fazer escolhas, decidir e assumir compromissos, independentemente das injunções, dos contratempos. E quantas não são as sinuosidades que temos de enfrentar para assegurar a realização de nossos objetivos?
E porque isso é fato, o mar de rosa, a pura tranquilidade de uma vida só de encantos existe somente nos contos infantis, nas poesias de afagos, nos belos sonhos de uma noite bem dormida. No mais, a vida tem seu lado de riso, mas ela é, sobretudo, luta, esforço, busca.
O cuidado surge dessa condição de a vida ser uma permanente peleja, não porque ela seja um castigo, mas porque nada está pronto por definitivo. Nossa vida se presta mesmo a isso, a contribuir para construção de nosso espaço-tempo, de todas as coisas de que nos servimos para viver.
O cuidado é mais um desses dados fundamentais da vida. Sem ele, não temos como sobreviver e isso ganha tal essencialidade que o pensador Leonardo Boff (1938) assim traduziu: “Sem cuidado deixamos de ser humanos”. Sem cuidado, a destruição de todos acontece. Basta olhar em torno. Um mundo de incertezas está presente em nosso dia a dia: desequilíbrios, desarmonias, amplo desrespeito às normas tradicionais, abusos de direitos e acintosa desmoralização das obrigações assumidas, completa ignorância do outro. E tudo isso por falta de cuidado, no seu sentido originário.
E o que significa o cuidado originalmente?
O dicionário de filologia ensina que o termo cuidado é derivado do latim cura e expressa a atitude de desvelo, de preocupação, de inquietação pela pessoa amada ou por um objeto de estimação.
O cuidado, nesse sentido, não é apenas um ato, um gesto aleatório que se faz num momento determinado, o cuidado é uma atitude, diz respeito a caráter, a preocupação, a responsabilização por destinos, por objetivos, por compromissos familiares e sociais. Nisso, o cuidado se configura como uma das peculiaridades do ser humano. Pode-se dizer mesmo que o cuidado alcança ares de beatitude, porque nele há uma dessas qualidades de bem-aventurança que engrandece a vida, a exemplo das virtudes humanas tradicionais, como: amizade – compreensão – generosidade – laboriosidade – flexibilidade – perseverança, etc.
O cuidado está presente ali naquele esforço que estrutura e ordena o social, bem no centro das atenções da família, da igreja, do Estado, do clube, do mundo do trabalho, nesse movimento que constitui a integralidade da experiência humana, com seus acertos e descaminhos.
Cuidar, cuidar-se é reconhecer que somos cidadãos do mundo, é fazer com que nosso conhecimento ultrapasse a dimensão contemplativa e se expanda na direção do enobrecimento de todos os homens, via ação efetiva, ficando atento para não se perder o chão de apoio, encantando-se com o espetáculo do mercado, o que deixaria sem domínio e controle a própria vida. A ideia
é cuidar-se para ter como cuidar do outro na possibilidade de cada um, nesse entendimento de que “cuidar é conhecer”, como expressou o filósofo francês Michel Foucault (1926 – 1984).
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 20/07/2018
Alterado em 23/07/2018
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