Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

O Outro
 
Olhar a vida.
Querer enxergar à frente para conhecer melhor a própria razão de viver.
Nessa primeira percepção do olhar interessado, reconhecemos a existência de outros além de nós mesmos. E nisso se revela um universo de criação do homem representado em bens necessários à vida e modos de ser e agir desenvolvidos em gestos, sabores, vontades, escolhas, determinações.
Logo se observa que somos um ser plural.
A exaltada individualidade dos sujeitos não passa de falácia, verdadeiro ato ilusório que ofusca nossa maneira de ver, vezes atribuindo valores superiores onde há igualdade, vezes criando distâncias dentro dos espaços comuns de redes próximas, vezes construindo diferenças em razão de puro preconceito, convencionalismos de cada um.
O fato é que não existe individualidade pura.
Nós somos cultura e como tal nossos costumes, nossos valores foram instituídos no decorrer dos séculos e passaram de sociedade para sociedade, de pais para filhos e, assim, também, aconteceu com todas as invenções e domínios materiais. Tudo é bem do homem, ainda que neguem isso algumas de nossas ideologias, ainda que muitos se apropriem do usufruto de criatividades seculares como se donos privilegiados fossem.
Nós nos civilizamos nesse jogo que nos faz plurais, exatamente nesse processo que nos coloca como sendo membros de um grupo social num tempo e num espaço.
O outro existe. Não há como fugir disso.
O outro é o reflexo em nosso espelho, vendo o outro no espelho da vida, estamos nos olhando. Aquelas virtudes e defeitos dele (desse outro) estão no social e nós somos esse social que possibilitou a construção do jeito de ser do outro.
Sendo assim, se nossa existência depende do outro, temos de encontrar formas para garantir a salubridade da vida desse outro via organização do espaço social, permitindo que a todos sejam oferecidas oportunidades de poder escolher e decidir.
Na lembrança de que cada um de nós não é o mesmo no momento seguinte, porque outras informações e experiências nos transformam, o mesmo acontece com o outro, que, em razão de suas experiências, também se modifica, daí a expressão de Michel Eyquem de Montaigne (1533 – 1592): “Somos duplos em nós mesmos [...]. Eu agora, eu depois, somos a bem dizer dois”.
O tempo e o espaço surgem, aqui, como fundamento para a boa compreensão do outro. Historicamente, há alguns modelos que foram bastante fortes nesse poder de dirigir o foco de nosso olhar.
Para os gregos (V século a.C.), o homem é pensado dentro de uma doutrina que prega a indiferença ante a cultura, na alegação de que a pátria de todos nós é o universo. Vive-se um mundo sem fronteiras, podendo compartilhar de todas as suas conquistas. A prática grega não foi um bom exemplo para esta teoria, mas esse ideal foi importante para a humanidade que dispôs de um rumo, uma direção para caminhar em busca dessa realização.
Mais tarde, com o cristianismo (século I de nossa era), nós fomos convencidos a viver no coletivo, mas aí todos nós ganhamos individualidade. Nasce o outro. A parábola da ovelha desgarrada (Lucas 15:3-7) retrata bem essa ideia: “Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha que estava perdida!” Nessa proposição, o entendimento é que cada indivíduo é salvo isoladamente. Isso demonstra que cada um tem valor em si.
A fase seguinte, do humanismo renascentista ao iluminismo (século XIV ao século XVIII), as ideologias nos colocaram no seio de interesses de domínios de bens. Nossos talentos e habilidades costuraram novos caminhos e o outro passou a ser visto por detrás das posses. Vê-se em primeiro lugar a propriedade e, depois, os indivíduos. É a glorificação do ter. Nesse pragmatismo e nesse economicismo desaparece a importância homem por si mesmo. O outro se tornou estranho porque sua alma materializou-se no valor do bem possuído e perdeu seu encanto ao se desfazer de sua capacidade de maravilhar-se com as cores, os sons, os abraços amigos e fraternos, esses bens do reino da oferta despretensiosa.
Modernamente, avançando nas conquistas da alma, chegamos à Declaração Universal dos Direitos do Homem e, depois, aos direitos dos animais e aos da natureza. O outro agora não é apenas o nosso semelhante, é a vida de tudo e de todos, é a biodiversidade.
O outro é agora, também, o nosso ar, a nossa água, as nossas matas, os seres que rastejam e voam. Somos um deles, somos natureza.
Somos todos nós mesmos o outro, aquele que é indivíduo e habita no coletivo e no universo. Somos alma, matéria, criatura e criador, uma das faces da natureza infinita e misteriosa.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 20/07/2018
Alterado em 12/09/2018
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