Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos


O Devaneio
 
 
Nossa experiência inicial é com o mundo sensível. Nascemos e vivemos num dado espaço e tempo. Há uma materialidade envolvendo toda a vida humana ao longo das eras e dos séculos e, nesse extenso trajeto, fomos ajustados, fisicamente, para nos relacionar com todo este universo de coisas materiais. E, em razão disso, ganhamos nossos sentidos: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato.
O hábito de viver neste mundo material, em todos os estágios de nossa vida, nos coloca em intimidade com uma imensidão de cores, sons, cheiros, sabores e formas com os quais nós nos afeiçoamos vagarosamente, sem nenhuma surpresa. O espanto, o sobressalto pelo inusitado de alguma beleza particular, se reserva a poucos momentos nos gestos de contemplação de alguma alma mais sensível. Esses que chamamos de gênios, artistas, poetas...
No exercício diário da manutenção da vida, o envolvimento com projetos, programas e a incessante corrida por resultados financeiros ganham predominância para a maioria dos sujeitos. O homem, antes de tudo, vive para o trabalho. E por força de ideologias que vêm dominando nossas vontades e justificando nossas escolhas, os bens materiais alcançaram importância primeira em nossas conquistas: a casa, o alimento, a roupa, a saúde, o saldo bancário...
A imagem saudável que temos da vida em sociedade é a do trabalho produtivo e, nessa imagem, repousa a ideia de progresso com sua ambiguidade de virtudes e desastres.
É simbólica a mensagem narrada por Antoine de Saint-Exupéry (1900 – 1944) em seu texto O Pequeno Príncipe, quando o principezinho faz sua viagem ao quarto planeta. Ele se encontra com um homem de negócios que contava estrelas incessante e aborrecidamente:
 
- E que fazes tu dessas estrelas?
- Que faço delas?
- Sim.
- Nada. Eu as possuo.
- Tu possuis as estrelas?
- Sim.
- E de que te serve possuir as estrelas?
- Serve-me para ser rico.
- E para que te serve ser rico?
- Para comprar outras estrelas, se alguém achar.
 
Desconfortado depois do encontro com o homem de negócios, o principezinho devaneou ao olhar o céu: “As estrelas são todas iluminadas... Não será para que cada um possa um dia encontrar a sua?”
O devaneio, como a filosofia, nasce do espanto, da admiração que desenvolvemos nesse contato com o mundo. Nessa condição, o devaneio é uma forma de refletir e nos capacita a perceber e usufruir da sublimidade deste mundo.
Surpreendido pela grandiosidade das formas e dos sistemas, dos caminhos traçados na regularidade de conhecimentos acadêmicos, o espírito humano se rebela e sonha. Nas asas da imaginação, esse espírito aventureiro atravessa fronteiras, desfaz horizontes e voa em direção ao infinito, fazendo-se pleno enquanto contempla no seu entorno a natureza vibrando em cores, cantos e sabores.
O olhar que surge desse gozo da vida em plenitude visualiza detalhes dissimulados em espaços mais surpreendentes, vezes na grandiosidade das imensidões – como os oceanos, as florestas e os rebanhos de animais –, vezes se ocultando em miniaturas de um rosto que ri, de um gesto que confraterniza, de uma flor que se abre.
Devanear é o ato de encantar-se nesse percurso de perceber a vida. É um modo de a consciência reconhecer o belo ainda que escondido no dia a dia de nosso trabalho, na conturbada busca da sobrevivência. Basta olhar com mais intensidade os indícios, examiná-los e extrair deles a dimensão ilimitada presente em cada coisa, em cada fato da natureza, como nos assegura Platão (427 – 347 a.C.): “[...] tudo contém em si mesmo conaturado o limite e a infinitude”.
O limite e a infinitude ficam no domínio individual da alma sonhadora que procura auscultar a voz interior e animar-se para melhor utilizar os sentidos, revalorizando cores, sons, cheiros, sabores e formas.
O devaneio é uma atitude de contemplar. É um modo de minimizar a força da agressão do mundo, cultivando o espírito a fim enxergar valores para além dos benefícios materiais, o que faz surgir uma nova realidade que aquece e protege a alma daquele que imagina, numa comunhão de sonhos e realizações, assim como expressou Edgar Poe (1809 – 1849): “É o sonhador que cria a realidade a cada ondulação de suas imagens”. 
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 24/07/2018
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras