Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos


A Razão
 
 
Por longos séculos, o homem viveu voltado para o presente. Sua preocupação básica era a caça, a pesca e a coleta de frutos. Este modo de viver consistia em retirar das matas e dos rios aquilo que lá existia para seu sustento. Bem mais tarde surgiram a pecuária e a agricultura. Estas atividades já se configuravam numa melhoria extraordinária da inteligência humana. Outros passos aconteceram e chegamos à sofisticação das ciências e tecnologias avançadas dos dias de hoje.
Simultaneamente, ao realizar cada um desses feitos, o homem foi atribuindo maior importância a esse gesto: o trabalho vai se qualificando como virtude, aquilo que marca o bom caráter do homem. A cada novo tempo e a cada nova realização, esses valores foram se hierarquizando e formando um painel sem fim de ideias, direitos e deveres articulados entre grupos simples e complexos, laços que nos fizeram sociedades e nações.
Observando-se esse andamento, nota-se que vivemos em dois mundos: o mundo das coisas materiais preexistentes, de que nos servimos para transformá-las em bens e utilidades, e o mundo do pensamento, que organiza nossa forma de agir, a partir de uma cultura por nós mesmos instituída.
Essa convivência não transcorre de forma tranquila. Move-se como se navegando em rios de planalto, com suas rupturas de declive, vales encaixados, suavizados aqui e ali, em embates com margens, limites, rochedos. Idêntico a esse fenômeno da natureza, as acomodações sociais são arrastadas do conforto da permanência (status) para novos momentos instituidores de novidades, de benefícios ainda não existentes no social.
A presença da razão está aí mesmo nesse campo de convivência desses dois mundos que nos fizeram ser animal e humano. Nessa concepção, somos dotados de necessidades físicas vitais e de uma consciência de si, misteriosa conjugação que nos coloca dentro de um universo repleto de possibilidades e de escolhas.
Razão é essa capacidade que temos de contar, calcular, narrar, refletir e que abre nosso poder de nos organizar intimamente e de organizar nossa relação com o universo a partir de proposições como a ensinada pelo velho mestre Aristóteles (384 – 322 a.C.): “Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos”.
O cuidado aqui é saber que, nessa relação com o universo, nos obrigamos a entender o que cada coisa é e o que tem de essencial, pois, não fazendo isso, a racionalidade não acontece. Somos racionais porque desenvolvemos a capacidade de conhecer e perceber o que acontece, justificando-o.
Essa nossa aptidão de pensar, que nos refreia ou libera, põe em questão se a racionalidade está em nós ou no mundo. É certo que inventamos nosso cotidiano e o aprimoramos, mas a referência é sempre o sistema do mundo físico, que é o condicionante.
Desta base de experiências, aos poucos vamos rompendo limites, alargando horizontes, o que confirma nossa racionalidade como sendo uma construção histórica. Isso importa compreender que a razão como matéria de consciência, nesse estágio de refletir para agir, vai ganhando feições diferenciadas em cada espaço, em cada tempo.
Tendo-se presente essa historicidade da razão que se sintoniza com os espaços e tempos diversos, ela, a razão, é dotada do mesmo fundamento da cultura e das ciências, é contextual e ganha cor do ambiente em que o sujeito da ação vive, como na expressão de Richard Rorty (1931 – 2007): “O sujeito é aquele que é consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus atos”.
A razão nos iguala pela racionalidade e nos diferencia porque a construção de nossa razão resulta de experiências diversas, mas todos nós sonhamos, buscamos um mundo segundo nossa imaginação e nos divergimos, mas podemos dialogar. No diálogo, que é a virtude da razão, superamos a força bruta do instinto animal e confirmamos nossa humanidade.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 24/07/2018
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