A Utopia O mundo é imenso. Para viver nessa imensidão é preciso desenvolver conhecimentos. Na sociedade dos demais animais há um instinto que domina as ações: vide a sociedade das formigas, das abelhas... O homem perdeu a predominância da força organizadora dos instintos e em seu lugar estabeleceu a cultura, aquilo que através de sua racionalidade ele consegue executar ações: trabalho, divertimento, confraternização, lutas... E quantas coisas mais? Dessa base cultural o homem age, busca construir seu mundo e, no trajeto, surgem os sensos e contrassensos. Aparecem as ideias e ações que engrandecem o sentido de viver em bem-estar social e surgem as intemperanças que exaltam as ideias e ações egocêntricas. Essa múltipla forma de ser e agir, feição da cultura que se desenvolve aqui e ali, pede limite. O limite da cultura é a ética, a regra aplicada ao agir, condicionada ao lugar e ao momento em que vivemos. Na atualidade, em face do capitalismo licencioso e amplamente difundido, o desejo humano tornou-se impetuoso. Moderar esse ímpeto do eu civiliza o sujeito. Isto acontece porque o outro é incluído no projeto. Nesta inclusão se estabelece uma espécie de diálogo de experiências. É o interesse de harmonizar a convivência social nascida de uma consciência sonhadora que quer mais do que uma imagem poética do mundo social. Esse diálogo de experiências deseja ver a promessa do abraço fraterno acontecendo na representação do corpo atendido e protegido em suas necessidades, deseja ver a alma inebriada de sons da alegria produzidos em toda parte pela prática da igualdade de direitos. É esse processo civilizador que permite ao homem construir utopias, lugares no futuro onde a vida ganhará distinções e encantos e onde as dores do mundo serão amenizadas grandemente. O poeta e filósofo português Fernando Pessoa (1888-1935) ajuda entender e aceitar esse dilema: “Tudo em nós está em nosso conceito do mundo. Modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós.” Esse dilema do tempo presente fez surgir mazelas sociais que turvaram o alcance do olhar e impediram o desenvolvimento na crença de que os homens fazem a história. Romper esse gravame social para inaugurar uma história criadora do eterno é um dever do tempo moderno que processou o futuro ao divinizar a revolução, o progresso, a emancipação, a evolução. Por força dessa conquista, já faz parte de nossos desejos o reino da Moral, da Razão, da Perfeição, da Liberdade, da Eternidade. A utopia, aquele lugar-e-tempo-nenhum, ao ganhar soberania sobre o tempo presente, aciona todo esse reino da Moral, da Razão, da Perfeição, da Liberdade, da Eternidade e encaminha a significação da existência para a ideia da perfectibilidade, lugar iluminado no futuro a ser conquistado pelo homem, onde se instalará o absoluto, numa extinção dos horrores que atormentaram no passado e ainda conturbam no presente. Lá no futuro estarão o Bem e o Belo na forma como a imaginação os construiu. Alcançar essas grandezas, no entanto, depende mais do que simplesmente desejá-las. É preciso cultivar suas raízes aqui no presente com muita sabedoria e já sentir a sua luminosidade agora, como percebe o bom jardineiro ao antecipar o perfume das flores quando prepara o jardim ainda em projeto, só idealizado. A utopia surge do mundo experimentado, com raízes presas no passado e no presente. Ela, a utopia, é uma das expressões do tempo em que se vive, mas expressão de um tempo purificado, porque resultante do jogo secular de conquistas e derrotas, síntese que possibilita o refinamento dos desejos que buscam o encontro do Bem e do Belo à frente, esplendor do reino da Moral, da Razão, da Perfeição, da Liberdade, da Eternidade. O mundo utópico, nesse entendimento, não é uma miragem, é um Norte, uma referência que não está em lugar-e-tempo-nenhum porque não se subordina a contingências; ele, o mundo utópico, é a esperança presente na alma de quem sonha e luta por um tempo concreto onde há o direito de todos à ciência, à justiça, à igualdade, à liberdade. O poeta Mario Quintana (1906-1994) reflete com maior discernimento essa questão em seu poema Das Utopias: “Se as coisas são inatingíveis... ora! / Não é motivo para não querê-las... / Que tristes os caminhos, se não fora / A presença distante das estrelas!” Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 01/08/2018
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