O Vermelho E O Negro Ler é viajar. Como num passe de mágica, numa boa leitura, nós nos transportamos para um mundo além, onde as vidas se elaboram de modo diverso. O tempo é outro o espaço é outro, mas, aqui e ali, como se fosse hoje, práticas comportamentais nos surpreendem por sua semelhança as nossas atitudes: a inveja, as armadilhas em busca de vantagens fáceis, o abraço sereno e fraternal, o desprendimento que ajuda e acolhe... Essas animosidades e esses afetos ocupam espaços comuns dentro de estruturas sociais da família, da política, da economia, da igreja... e ganham um colorido que denunciam a marca do tempo, por sua severidade, por sua força de influência na dor ou no riso, nas marcas que separam ou aproximam as pessoas. Li, neste setembro/2011, o romance O Vermelho e O Negro, de 1830, escrito por Stendhal (Henry Beyle – 1783-1842). Li e vivi aquele mundo francês do século XIX como se tivesse compartilhado daquela encruzilhada em que o domínio das ideias católicas estava cedendo espaço a novos olhares, agora sob o comando da razão, a razão iluminista. Stendhal pouco descreve o ambiente físico, traceja alguns cenários para logo cuidar dos gestos e dos temperamentos de cada personagem do romance. E faz isso com maestria. O estilo de Stendhal é envolvente, seu texto flui numa leveza que cativa e, aos poucos, nos tornamos franceses por sentir sentimentos que estariam fora de nosso tempo, o que nos leva a tomar partido e emocionar. O tempo do Romance é o século XIX e colhe as vibrações da presença revolucionária de Napoleão Bonaparte (1769-1821), que foi um líder político e militar durante os últimos estágios da Revolução Francesa, e imperador da França de 18 de maio de 1804 a 6 de abril de 1814. O Romance expressa um cenário de mudanças sociais e culturais desse conjunto de acontecimentos que se tornaram dominantes entre maio de 1789 a novembro de 1799, a que se denominou de Revolução Francesa. Stendhal esboça a imagem da cidade, de seus costumes e denuncia as mazelas presentes através da ânsia de Julien Sorel, do Senhor e da Senhora Rênal, personagens centrais. O Vermelho e O Negro, na caneta de Stendhal, é mesmo uma crônica do século XIX, reflete com precisão a trama histórica do movimento revolucionário francês. O crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza (1918 -) afirmou mesmo que [...] Stendhal era incapaz de inventar um sistema fictício. Seu material para elaboração de suas obras foi sempre o mundo real [...]. Importa aqui é que podemos ouvir as vozes de um tempo distante e auscultar pensamentos de uma sociedade que se inquietava nessa transição para novos valores impostos pela Revolução: [...] não pensava mais em Napoleão nem na glória militar. “Tão jovem já ser bispo de Agde!”, pensava ele. “Mas onde é Agde? E quanto renderá? Duzentos ou trezentos mil francos, talvez” – Stendhal. Esses já eram sinais de tempos novos apontados pelo Romance, onde a fé sozinha já não valia. A razão agora já suscitava motivos para agir e decidir, mesmo que ainda não estivesse claro o alvo. O Romance, como se interpretando as indecisões do rumo revolucionário, mostra uma nobreza rural ainda forte, mas sob contestações de camponeses, pois ainda se sustentava de pé os dois grupos privilegiados: o Clero (Primeiro Estado) e a Nobreza Palaciana (Segundo Estado). Ler O Vermelho e O Negro é entrar em contato com esse mundo francês instável. Era um momento em que choques de interesse estavam ganhando seu auge, rompendo os pilares de sustentação mantidos pelo Clero e pela Nobreza Palaciana para incluir no corpo social o Terceiro Estado, constituído por burgueses, camponeses sem terra. É nesse clima que a trama de O Vermelho e O Negro reproduz o espírito de um tempo que rompia tradições centenárias e mais tarde alicerçou os três princípios básicos da Revolução (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), síntese do pensamento iluminista liberal e burguês que ainda hoje condicionam nossas práticas políticas. O século XIX é historicizado pela ficção de Stendhal e marca um momento novo na Literatura européia ao se preocupar com a vida social e posicionar-se sobre os problemas vitais de seu tempo. Ler O Vermelho e O Negro é, primeiramente, encantar-se e, pela mágica do estilo, ver-se aquilo que poderia ter acontecido, senão como de fato foi ao menos há verossimilhança, probabilidade de ter sido o clima, o colorido, a feição. Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 02/08/2018
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