O Grapiúna A epopeia heroica do desbravamento das matas do sul da Bahia para o plantio do cacau encontrou em Jorge Amado um intérprete atento. Livros como Cacau, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela Cravo e Canela falam de um Brasil rude, semifeudal, mágico e mestiço, numa composição narrativa que se nutriu do jogo de interesses que se instalaram em torno dos ganhos socioeconômicos resultantes do plantio das árvores dos frutos de ouro: o cacau. Nesse campo de luta, nas exigências do cotidiano, foram se formando jeitos específicos de viver, numa textura social que se revelava no tipo de mando, na forma de obedecer e de reagir, na linguagem chula dos operários, nos gestos ásperos dos corpos em dança. Era a cultura das civilizações interioranas se constituindo. Era o grapiúna se fazendo. Essa existência social sul-baiana, modelada na confluência dos acontecimentos, das conjunturas e das estruturas locais, foi ganhando consciência de si mesma, reconhecendo suas forças e possibilidades à medida que as experiências se desenvolviam e se imprimiam no pensamento daqueles migrantes que foram se instalando nas matas do sul da Bahia. Nesse conviver, em sintonia com as possibilidades de seu tempo e de seu espaço, as pessoas buscaram realizar sua vida e com elas se desenvolveram as ideias, as crenças, os valores, as normas, as atitudes, os padrões de conduta, as abstrações do comportamento, as técnicas e os artefatos. Estavam se instituindo, pouco a pouco, a cultura do grapiúna na figura do empregador, do empregado, do tropeiro, do canoeiro, do alfaiate, da prostituta, do advogado, do médico e do curandeiro. Estava se compondo a sociedade sul-baiana. Essa configuração cultural se enquadrava dentro de uma hierarquia social que lhe atribuía valores e não podia ser vista como coisa separada. O fazendeiro ocupava o topo da pirâmide e se fez coronel. O reconhecimento de cada um dependia sempre das práticas e das representações exercitadas pelos indivíduos ou grupos de indivíduos estruturados em diferentes classes sociais e com suas culturas específicas que lhes deram consistência própria e lhes permitiram agir de uma forma aceita por seus pares. Nesta ação, comparece uma relação que vai da harmonia ao conflito, num jogo de contenção e resistência, em defesa do interesse que a todos seduziu: a riqueza do cacau. A sociedade instituída na região do cacau, no sul da Bahia, deparou-se com um ambiente cuja especificidade histórica foi a do enfrentamento das adversidades postas pela mata virgem: indígenas e animais bravios. O capitão-mor Francisco Romero teve de vencer a hostilidade dos naturais antes de fundar a vila de São Jorge dos Ilhéus [...] e superadas muitas dificuldades novas e resistências daqueles bárbaros, repeliu, corajosamente, os seus opressores [...] como cita Silva Campos em sua Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus. Somente com a presença do plantio do cacau, depois de três séculos do primeiro contato, a mata se deixou vencer, conforme lemos em Os Donos dos Frutos de Ouro, do Professor Antonio Fernando Guerreiro de Freitas: [...] A capitania de São Jorge dos Ilhéus nos seus mais de três séculos não era mais do que uma pobre aldeia, nada mais tinha que fizesse parecer uma vila [...]. O cacau modificou tudo isso. O homem que venceu essa luta contra a mata e estabeleceu no sul da Bahia sua morada e construiu sua vida é o mesmo homem destemido e ambicioso que compôs a civilização grapiúna, cuja cultura fora retemperada na lide cotidiana desses homens que se fizeram rudes, como ásperas eram as condições vividas. Em táticas e estratégias criativas, inventaram modos próprios de fazer suas práticas e relações, apropriaram-se do espaço, conheceram suas exigências, dominaram sua força e caminharam impávidos em busca da transformação das matas em roças de cacau. Foi desse cruzamento de linhas de forças, advindas do interesse da conquista do espaço para o plantio do cacau, que emergiu o grapiúna, um dia migrantes nordestinos, sergipanos em sua maioria, que abandonaram sua paisagem natal, a roça, as águas, as matas, os vizinhos, as festas, quebraram suas raízes e criaram aqui no sul da Bahia um novo sentido para viver. As tradições, valores e lembranças revigoraram-se ao sabor dos novos embates, formando um novo sentimento de tempo, estabelecendo novas estruturas, esquemas e estereótipos, um novo homem. Esse novo homem, que se tornou rústico, como áspero era o ambiente em que viveu, proprietário de terras ou trabalhador, elitizou-se ou manteve-se gente modesta, ganhou existência e consciência e fez surgir o mundo sócio-histórico do cacau como produto de sua prática cotidiana. Ao realizar esse mundo objetivo, o homem sul-baiano realiza a si próprio como sujeito, compreende o significado da luta e da coragem, mantém a esperança fazendo-se grapiúna e herói na epopeia do cacau. São Jorge viu então coisas terríveis: os homens matando-se traiçoeira e cruelmente pela posse de vales e colinas, de rios e serras, queimando as matas, plantando febrilmente roças e roças de cacau. Vira a região de súbito crescer, nasceram vilas e povoados, vira o progresso chegar a Ilhéus trazendo um Bispo com ele, novos municípios serem instalados [...] (Jorge Amado - Gabriela Cravo e Canela). Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 02/08/2018
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