Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos


Aposentadoria: A Idade De Ouro
 
 
É somente através da Beleza que o homem faz seu caminho para a Liberdade – Friedrich Schiller. 
                           
Tomando-se como verdade que viver é uma luta em busca da realização de sonhos, aposentar-se é um desses sonhos, porque se ingressa em um novo mundo do contexto da experiência estética, da experiência do belo, em que o deleite de ouvir, sentir, saborear, vale primeiro, até mesmo no exercício de um novo trabalho. Vale agora o prazer, o encanto que se consegue sobrepor em cada ação.
Essa noção de uma vida em que o quotidiano seria irmão do sonho advém dessa possibilidade que a aposentadoria confere ao sujeito: a de ser dono do próprio tempo. E nisso, o sentido da alegoria da vida se transforma, porque os gestos e as vontades têm a ver agora com o doce cultivar de um viver, distante do envolvimento instrumental dessa busca de ajustamento entre meios e fins, dentro das estruturas do trabalho produtivo, submetido à lógica do lucro.
Nessa condição de dono de seu próprio tempo, o aposentado não se transforma num flâneur, num ser que passeia sem rumo, desocupado, vadio. Ele, o aposentado, tão somente, recompôs a liberdade de poder agir independentemente do relógio de ponto, pois já superou essa fase inicial e inaugurou outra instância, um momento novo que reconstitui a sua origem, à semelhança do nascimento. Aposentar-se é ganhar o status da criança. Ele é a criança que experimentou o tempo e pode agora gozá-lo plenamente, a seu modo, como um prêmio conquistado no campo daquela luta árdua que o transfigurou de jovem em idoso. Idoso, mas vivo e dono de seu tempo. 
Viver essa nova fase é cantar a liberdade com o olhar de admiração de quem enxerga para além do sensível, é contemplar, é perceber as cores e os matizes, os sons e as harmonias, os enredos e os dramas, cada movimento, mas sem se perder naquilo que vê e sente, porque se está liberto das flutuações do sensível. Amealhar bens já não é preciso, porque há algo mais sólido e mais durável em jogo: o riso, feixe de luz que a alma produz na alegria de estar vivendo, abstraído do reino das necessidades dos interesses comerciais, dos interesses práticos imediatos.
Transportado para esse espaço que induz cantos, encantos, na liberdade de poder ser, na distância de um mundo pulverizado de fragmentos de puros interesses do ter, cada aposentado busca sua própria reafirmação na construção do conhecimento e domínio desse novo momento. E todos fazem suas escolhas: uns pescam, outros cantam, outros tocam e dançam e envolvem-se com diferentes leituras, viajam, entregam-se em paixões pela pintura, entregam-se nas vibrações religiosas, nos encontros de associações; criando, recriando, com o direito de [...] amar e malamar... amar solenemente [...], como teorizou Drummond de Andrade ou o direito de cantar, vibrantemente, como fez Gonzaguinha:

 
[...]
Viver e não ter a vergonha de ser feliz,
Cantar, e cantar, e cantar.
[...]

 
 
E se é mesmo possível amar – cantar, viver esse novo instante, colhendo os frutos e as flores do bom semeador, vale maravilhar-se com as luzes do final do dia, no poente distante, numa espécie de idade de ouro. O aposentado transfigura-se, nesse contemplar, num reclassificador dos valores do esforço, ao subordinar a importância dos bens materiais aos interesses maiores do prazer de viver. Nas subjetividades que envolvem contentamento, felicidade, ele revigora a prática do abraço amoroso que reconstitui o afago quase que perdido nos meandros dos fazeres profissionais, enrijecidos pelas normas, pelos regulamentos que nos fizeram ser chefes, gerentes, membros de hierarquias criadoras de diferenças e distanciamentos.
Nesse caminhar, envolvido com os afazeres cotidianos, o aposentado alcança o auge de sua experiência. Ele chega ao topo da montanha do viver, e de lá enxerga toda extensão da planície por onde percorreu. Reconhece aquelas lutas que um dia foram suas e se vê naqueles jovens navegando os caminhos traçados por ele. Nisso, seu espírito se revigora ao perceber o mistério do infinito se elaborando, nesse reacender da aventura da vida em ação, reproduzida por outros interesses e por outras esperanças. Nós nos eternizamos quando nossos feitos são reproduzidos por outros que vêm depois de nós.
A vida lúdica do aposentado é a resposta de um mundo que se civiliza ao possibilitar que a luta de viver confira àquele que se aposentou o prêmio da experiência estética, da apreciação do belo, ganhando de volta o sentido de sua própria totalidade, no renascimento da liberdade de poder escolher o modo de seu viver num tempo novo, o tempo da aposentadoria.
 
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 02/08/2018
Alterado em 02/08/2018
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