Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos


O Indivíduo
           
Somos parte de uma ordem natural e de uma ordem social.
Na ordem natural, pertencemos ao reino dos animais vertebrados e somente há pouco tempo (150 mil anos) começamos a desenvolver habilidades que nos conduziram a outro patamar, o da ordem social revelada e ampliada através do trabalho.
No trabalho humano, construímos o mundo a nosso modo e nos produzimos a nós mesmos. O animal labora seu mundo a partir de um instinto que lhe dirige ação: o João-de-barro pela eternidade continuará edificando sua casinha com o mesmo material, não precisa mais do que isso para viver.    
A grandiosidade do trabalho do homem está no sentido transformador da realidade, o que faz o mundo ser outro no dia seguinte: criamos confortos jamais imaginados por nossos avós. Nesse exercício milenar foi acontecendo um relaxamento de nossos mecanismos naturais automáticos destinados à administração da vida, cedendo lugar para o ato pensado, para a ação deliberada intencionalmente.
Esse material resultante da ação humana intencional e seu modo diversificado de realizar cada coisa são um dado novo na ordem natural: é a cultura. Fazendo cultura, o homem contempla um tempo anterior e se lança no futuro, antecipando o tempo através de projetos.
Realizar essa proeza de inserir dados novos ao mundo natural só foi possível porque contou com a ação de muitas pessoas juntas, por essa mesma razão é que novidades continuam aparecendo atualmente. Nesse caminhar, o homem foi fragilizado ao perder a segurança da vida animal, a doce harmonia com a natureza, e nisso teve de armar um sistema especial para garantir o comando dentro da ordem social propositada: ele instituiu regras, normas capazes de assegurar modos de relação.
Há lugar para se pensar na existência do indivíduo num espaço tão plural? Há esse lugar, sim. Mas é preciso ressaltar: não existe a individualidade pura. Nós somos nossa família, nosso grupo e a nossa sociedade. Temos em nós o sentimento do tempo em que vivemos.
Cada ser que existe ganha sua singularidade, uma espécie de propriedade inerente àquilo que cada coisa é: existe a árvore e a floresta, o lobo e a alcateia, o homem e a sociedade. Aqui cabe uma importante ressalva: o indivíduo não se mostra espontaneamente na sua natureza, na sua essência:

- Ver a floresta e distinguir cada árvore e suas funções é assunto para especialista.
- Observar a alcateia e saber como o lobo se organiza para se proteger e garantir a função de cada um dentro do grupo exige vasto estudo.
- Reconhecer o indivíduo humano é ainda mais complexo que todos os demais, porque aparecem outras dimensões bem embaraçosas em razão do processo histórico que nos envolve. O ipê é sempre o mesmo ipê, o lobo é sempre o mesmo lobo, já o homem se modifica a cada momento e em cada canto onde vive em face de questões de domínio ideológicos e culturais. Nessa razão, a nossa individualidade permite uma infinidade de graus e, mesmo assim, ela não se realiza plenamente.

Ver o indivíduo é mais do que descrever suas características de constituição física, é observar a complexidade e riqueza de suas determinações. Nessas deliberações, no modo especial como a pessoa realiza seus atos, na força de suas qualificações e talentos, aparece a individualidade, o caráter de excepcionalidade do sujeito, tornando-o único.
Outra maneira de ver o indivíduo é percebê-lo sendo instituído dentro da sociedade:

- A individualização cristã: "[...] haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos (retos) que não necessitam de arrependimento" (Lucas 15:7).
- A individualização secularizada: "Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal" – (Artigo III – Declaração Universal dos Direitos Humanos – Aprovada pela ONU em 10-12-1948).

O indivíduo é sim o fundamento da sociedade. Nesse reconhecimento se confirma a grandeza das estruturas que conseguem bem proteger cada cidadão.  Pense nas notas musicais DÓ, RÉ, MI, FÁ, SOL, LÁ, SI isoladamente. Na aparência, cada uma delas, sozinha, não tem tanta grandeza. Ouça a Quinta Sinfonia de Beethoven e veja o milagre da combinação daquelas sete notas.
 Falta acontecer na sociedade é a capacidade de harmonizar a sinfonia humana dentro de uma estrutura de indivíduos interdependentes que se reconheçam e possam agir, nessa relação, com espírito fraterno, admitindo, em livre consciência, que todos nós somos essenciais à orquestra universal onde, a um só tempo, somos executores do concerto e o auditório.
 
 
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 06/08/2018
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras