O Cotidiano Na História O estudo de história na contemporaneidade se envolve com variados referenciais teóricos instituídos no corpo dos movimentos sociais que geraram as duas grandes guerras mundiais do século XX e abriram no Ocidente um fosso extraordinário entre pobres e ricos. Por força dessas circunstâncias, surgiram diferentes maneiras de abordagem desse mundo novo, como método de historiadores para revelar estruturas e valores sociais escondidos por detrás dos sistemas explicativos (socialistas – capitalistas) instituidores de lideranças formais (papas, reis, presidentes, generais etc.). Nasce aí a história centrada nas ideias e decisões dos grandes homens, nas grandes batalhas e nas estratégias diplomáticas. Na contramão dessa história totalitária, surge um novo modelo de abordagem propondo um novo paradigma, uma história-problema em que se incorporam todos os homens como sujeitos da história, ao se alargar seu objeto de estudo e buscar-se um aperfeiçoamento metodológico, abrindo-se às temáticas e aos métodos das demais ciências humanas. A História, esse estudo do homem em ação, passa a se importar com os cotidianos dos indivíduos particulares e dos pequenos grupos subalternos. Ela, a História do Cotidiano, passa a ser uma descrição mais realista do comportamento humano. Nesse modo de ver, há um envolvimento necessário com as fontes primárias que vão permitir a instituição de modelos de ação demandados de experiências específicas, conhecíveis a partir de vestígios materiais deixados pelo exercício de experiências vividas e compartilhadas no dia a dia dos indivíduos. É desse lugar onde se formam as estruturas e os valores que configuram os grupos e modelam sua identidade. É aí desse cotidiano que emergem mundos simbólicos plurais, que dão sentido a vida de cada pessoa, e fazem surgir formas organizadoras de projetos pessoais e coletivos, pelos quais se luta diuturnamente. Conhecer esses indivíduos e grupos é interpretar esses modelos de ação, é desvelar esses significados, definindo, sobretudo, as ambiguidades desse mundo simbólico, ao reconhecer os benefícios e as mazelas de seu tempo. Nesse exercício de conhecimento dos indivíduos e dos grupos, há necessidade de se reconhecer sua inserção numa escala de mundo muito maior que aquele de seu entorno imediato, o que faz ser cada um de nós uma síntese de certa totalidade, padrão de um tempo que se define em possibilidades ideológicas e técnicas próprias. A história do cotidiano é uma espécie de micro-história. É um conhecimento do indivíduo e de grupos como parte do universo e não como ilha dentro do mundo social. É nesse sentido que se desfaz a ideia da micro-história como sendo a representação de espaços/tempos mínimos. Conhecer indivíduos em suas particularidades, sem separá-los desses laços universais que os envolve, é utilizar-se de uma prática da micro-história, que, essencialmente, está baseada numa redução da escala de observação. Estudar a sociedade através da micro-história é trazer para o discurso histórico as vastas estruturas sociais complexas, “[...] sem perder a visão de escala do espaço social de cada indivíduo, do povo e de sua situação na vida [...]”, como expressou o historiador italiano Giovanni Levi (1939). Em síntese, pois, enquanto redução de escala de observação, a micro-história percebe nos espaços mínimos a presença do geral. Isso significa entender, num exemplo simples, que a ação banal da compra do pãozinho do café da manhã tem uma relação profunda com o mercado global de trigo. Isso corresponde afirmar que, nas dimensões particulares, há diferentes articulações com outras tantas esferas da sociedade, ainda que não vislumbradas pelo indivíduo da ação, [...] mesmo que não estabeleça com a genericidade uma relação de consciência, tem sempre contato; não existe, portanto, a particularidade pura [...], conforme ensina a historiadora Maria Helena Bittentcourt Granjo. Há aqui uma vida cotidiana individual, fruto de experiências particulares que se enlaçam com processos mais amplos, cujas raízes estão presas no interior de esferas sociais menores, de onde, por força dessa relação, se pode extrair significados completamente novos, ao se alterar a escala de observação para espaços mínimos, no que aproximam os historiadores da micro-história daquelas raízes que se instituem como base do processo inicial da experiência de viver. É nesse campo de busca de realização dos indivíduos que se constituem os vestígios da história, modelados pelas vontades circunstanciadas dos sujeitos. Esses vestígios, assim, guardam com maior nitidez os valores e significados das ações desses sujeitos, compondo sua cultura, que, segundo o antropólogo Goodenough, “[...] consiste no que quer que seja que alguém tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros [...]”. O que o historiador da micro-história tem como tarefa é, então, iluminar essa trama de significados que dá sentido a essas inter-relações no interior de espaços reduzidos, ao tornar inteligíveis as estruturas aí constituídas, possibilitadas pela descrição densa, em que se pode obter o conhecimento do particular, sem dissolver a existência do outro, dessas esferas sociais de diferentes dimensões, de que é parte integrante esse particular. Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 06/08/2018
Alterado em 06/08/2018 Copyright © 2018. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |