O Pensamento
A minha casa fica lá detrás do mundo
Aonde eu vou a um segundo quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à toa mas como é que a gente voa quando começa a pensar (Felicidade, Caetano Veloso - 1942) É pacífica a ideia de que existe um mundo sensível, aquele percebido por nossos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar) e um mundo só percebido através do pensamento, da intuição e do intelecto, ali onde reina a inteligência, território da razão e dos devaneios presentes na arte (poesia, canto, música, dança, pintura, literatura).
Nessa atividade de reconhecimento de mundos diversos é que acontece o voo do pensamento, que navega para além dos horizontes sensíveis, universos tão múltiplos a invadir os lugares dos sonhos, lá aonde chegam as imaginações libertas de contingenciamentos do cotidiano social dos homens. Nesse palco, vem à lembrança uma das expressões do grego Platão (428-348 a.C.): “A atividade do pensamento é um diálogo sem som que cada um mantém consigo mesmo e serve apenas para abrir os olhos do espírito”. Nessa consideração platônica, pensar é contemplar. O pensamento não é ainda uma atividade criadora, mas uma passividade reveladora de outro mundo para além deste da existência humana. O pensamento aqui se contenta em perceber, para logo repousar, porque fica na contemplação. Porém, há um encanto nessa passividade, porque a procura é surpreendida com o encontro do lugar apropriado, a “essência” do sensível — mundo das formas absolutas, o Bem, o Belo, o Justo. No mundo sensível, habitados pelos homens, temos bondades, belezas e justiças relativas, moldadas por contingências de tempos diversos, mas iluminadas pelas formas absolutas (o Bem, o Belo, o Justo) e, por isso, o mundo sensível tende ao aprimoramento. Esse passeio do pensamento platônico, surpreendente, qualifica o homem como ser racional, configura o outro mundo em suprassensível (metafísico), espaço da morada dos deuses, das virtudes, das utopias, lugar da perfeição, do absoluto, onde reina a harmonia. Esse mundo platônico é preexistente ao mundo sensível. Esse voo platônico, ao navegar para além das estrelas e vislumbrar esse mundo suprassensível, lugar da essência das coisas, foi bem cedo modificado por Aristóteles (384-322 a.C.). Aristóteles retira a essência das coisas lá das nuvens platônicas e a conduz para o espaço da morada dos homens, aqui onde as próprias coisas acontecem. O pensamento agora não alça voo para um mundo independente, ele imerge no chão positivo da vida vivida pelos homens e encontra um universo infinito posto à compreensão. O mundo sensível e o suprassensível, agora, são interdependentes. O mundo suprassensível de Platão permanece imóvel. Por ser absoluto, ele não tem mais para onde ir, já é perfeito. O mundo aristotélico, diferentemente, está em movimento constante por ser sensível e, por isso mesmo, ele é relativo, busca sempre o aperfeiçoamento. Temos aí 2 mundos a garantir o voo do pensamento: o sensível e suprassensível. O modelo aristotélico de pensar, que tornou interdependentes o mundo sensível e o suprassensível, entregou ao próprio homem o domínio de sua racionalidade. Na sequência, a teologia cristã assume a predominância do pensamento, à semelhança das ideias platônicas. Nesse modelo teológico, o pensamento volta a alçar voo em direção a outro mundo distinto, autônomo, criador de todas as coisas, lugar da Perfeição, agora explicado não pela lógica da racionalidade humana, mas pela Fé: “A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hebreus 11:1). É o novo voo do pensamento justificado por um domínio de uma ideia nova, como bem esclarece Santo Agostinho (354- 430), em sua obra majestosa, A Cidade de Deus. Neste texto, Agostinho descreve o mundo dividido entre o “mundo terreno” (dos homens) e o “mundo espiritual” (dos céus — a Cidade de Deus): “A história só passa ter um sentido quando vista sob o olhar da fé, em que tudo principia e tudo conduz, possuindo, portanto, uma ordem transcendente”. O pensamento justificado pela teologia voa por séculos e ainda está presente, entre nós, nos dias de hoje. As verdades cristãs, no entanto, não pacificaram a rebeldia do pensamento. Ele continua inquieto. Em verdade, o pensamento nunca se sossegou. É como se brincasse de passear por labirintos das possibilidades infinitas do mundo, pintando de cores mais fortes aqui, graduando de tonalidades mais sóbrias noutro espaço; cores sobre cores em degradês sutis, a forçar o desenvolvimento da capacidade de enxergar e de auscultar de cada um de nós. Nesse espírito de inquietude do pensamento, existe uma curiosa sentença atribuída ao político romano Catão (234-149 a.C.), que convida à reflexão atenta sobre o pensamento desassossegado: “Nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só do que quando a sós consigo mesmo”. Nessa inquietude que não se cansa, o pensamento experimenta novas aventuras com o surgimento dos tempos novos. Na expressão da filósofa Hannah Arendt (1906-1975), em seu livro A Vida do Espírito, ela argumenta: “Na Era Moderna, o pensamento tornou-se principalmente um servo da ciência, do conhecimento organizado...”. A crença, agora, é a de que tudo se realiza a partir do “solo positivo”, para usar uma expressão do filósofo Michel Foucault (1926-1984). Nesse “solo positivo”, surge a tese de que a razão, o intelecto humano, é a única fonte de conhecimento verdadeiro, que dispõe de condições de conhecer tudo que existe, porque cada coisa tem uma causa aberta à compreensão. É o “racionalismo” defendido pelo pai da filosofia moderna, René Descartes (1596-1650) e outros. O fundamento é de que os princípios da busca da certeza e da demonstração não vêm da experiência, são elaborados somente pela razão. O pensamento que surge dessas ideias é o da dúvida permanente, deve ser analisado criteriosamente para fazer surgir a certeza: “Meus pensamentos existem e a existência desses pensamentos se confunde com a essência da minha própria existência como ser pensante: penso, logo existo” (Descartes). Ainda aqui, o mundo suprassensível (metafísico) continua existindo: a razão é independente da experiência. O voo do pensamento, aqui, tem um ponto de origem, a razão, ele ganha consciência de si — “penso, logo existo” — e recebe uma obrigação, a de desvendar detalhes que permitem a compreensão de tudo que existe. Exercitando esse desejo de compreender tudo que existe, o pensamento, de sobrevoo a sobrevoo, aventura-se por outras rotas e passa a considerar a experiência como fonte do conhecimento. É o “empirismo” ganhando espaço como uma nova teoria justificadora do voo. John Locke (1632-1704), o artesão do pensamento liberal, é considerado o principal figurante do empirismo: movimento que acredita que são as experiências que formam as ideias. Com sua corrente, denominada “Tabula Rasa”, é dele a afirmação: “As pessoas desconhecem tudo, mas que através de tentativas e erros aprendem e conquistam experiências”. Essa tese contamina tanto esse novo momento que o teórico do socialismo, Karl Marx (1818-1883), em cujo pensamento a questão da ação alcança papel crucial, ele utiliza a expressão “práxis” como “aquilo que o homem faz” em oposição a “aquilo que o homem pensa”. Com essas teorias da Era Moderna, o pensamento passa a enfrentar um turbilhão de ideias. O caminho único que fazia o pensamento voar suave, em tranquila certeza, justificado por um fundamento consistente, agora se pluraliza e já não há lugar para ideias principais: o pensamento perde esse berço de tranquilidade e se individualiza em cada sujeito da ação, a partir de suas experiências pessoais. A imagem que se pode visualizar é a de fogos de artifícios em noite de festa. A luminosidade das ideias na Era Moderna já não é a de um farol a nortear rumos predefinidos, é a de simplesmente clarear. Não há mais rumos, não há mais sentido, estamos aqui para ser o que somos, homens. Fazer-se homem é procurar a plena emancipação da razão, evitando a barbárie da mercantilização permanente da “práxis” (aquilo que o homem faz), recuperando o caráter explosivo do pensamento, a permitir que cada um possa desenvolver suas próprias potências e vivê-las a partir de suas experiências individuais, ou como afirmou o filósofo Oswaldo Giacóia Jr. (1954), em sua aula no Café Filosófico: “Só os pensamentos que temos caminhando valem alguma coisa”. É do espaço de vivência do homem que o sobrevoo do pensamento acontece. Ousar, querer mais, problematizar, compreender e se confrontar com a sua atualidade por esses caminhos diversos, é daí que o pensamento se mantém em seu voo pleno. Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 16/08/2018
Alterado em 16/08/2018 Copyright © 2018. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |