Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

A Vontade (I)
 
 
Auscultar.
Um aspecto importante na vida do homem é poder auscultar, perceber com clareza os sinais de seu tempo e colher seus benefícios.
Essa faculdade de perceber o mundo sustenta-se noutro feito do homem, na sua capacidade de construir diferentes métodos, formas de ver e dominar o espaço de morada e de convivência. Um desses artifícios foi o de fazer surgir as mais diversas teorias, conhecimentos que explicam modos de viver e conviver.
Este artigo passeia nos jardins das ideias do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), com a intenção de compreender o conceito de vontade presente em seu texto maior “O Mundo como Vontade e Representação”.
Na noção comum, o termo vontade é aquela consciência que nos impele para a ação. Agimos a partir de uma série de informação que aponta o objetivo a alcançar e demonstra o caminho mais prático que devemos seguir para obter o intento desejado. Essa vontade resultaria de um conhecimento prévio. Cada pessoa, então, pode disciplinar sua vontade de acordo com as regras e as possibilidades de seu tempo.
Em Schopenhauer, o conceito de “Vontade” é inteiramente distinto dessa noção comum refletida acima. Essa diferença, contudo, causa um efeito de consciência que induz resultados valiosos para esse processo social em que vivemos. Para entender isso, é preciso levar em conta, primeiramente, esse novo conceito de vontade: “Vontade é [...] ímpeto cego, não inteligente e não moral” (Schopenhauer).
O Filósofo está falando de uma força cósmica que envolve tudo que existe e determina tudo que acontece, sem juízo de valores. Essa força é um dado inicial, é essência de todos os demais fenômenos. Se antes era o conhecimento que dava origem à vontade, agora é a partir da vontade (a força cósmica) que tudo o mais acontece.
Essa vontade (a força cósmica) está nessa imensidão infinita de que somos parte. As qualificações que colocamos para explicar as diferenças entre os fenômenos (homens, animais, vegetais, minerais) são meramente secundárias. Somos uma única coisa: Cosmo, Universo. As feições visíveis de cada coisa, de cada ser (homens, animais, vegetais, minerais), são absolutamente relativas, no final todos seremos pó, como na expressão bíblica: “[...] Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gênesis 3:19).
Esse nivelamento nos coloca como uma partícula deste imenso Cosmo. O homem despertou dessa inconsciência cósmica e assumiu uma vontade individual, mas não conseguiu se livrar da responsabilidade da “unidade da vida”, daquela essência que nos fez ser um fenômeno do universo. Schopenhauer explica esse fato de forma genial: “O carrasco que faz mal à sua vítima está fazendo mal a si mesmo, já que fere no outro a mesma essência que carrega em si”.
Nessa tese, o filósofo está chamando atenção para o princípio de individuação, isto é, dentro dessa “unidade essencial” (de ser uma partícula do cosmo), o homem individualiza-se dos demais fenômenos ao tomar consciência de si e dos demais seres. Despertado da inconsciência cósmica, então, cada pessoa se reconhece e reconhece o seu entorno, mais do que isso, a pessoa despertada já não pode fazer uma distinção egoística entre si e seus outros pares e nem mesmo entre si e todos os demais fenômenos, em face da “unidade da vida” e da “unidade essencial”. As dores, as alegrias, as modificações, tudo atinge cada ser: homens, animais, vegetais, minerais.
O fardo seria imensamente grande se pudéssemos compreender essa totalidade das alegrias, tristezas e modificações que acontecem no mundo social e no universo por inteiro. Cada um de nós só consegue auscultar o universo próximo, pois temos cá nossas limitações, nossas deficiências de imaginação e memória. No reconhecimento desse princípio de limitação de capacidade de possuir e dominar a totalidade, é que cada pessoa, liberta da inconsciência cósmica, deve moderar os desejos de querer, numa espécie de quietude e repouso, na consciência de que sozinho não há como sobreviver, porque há uma “unidade da vida” e uma “unidade essencial” que a vontade (a força cósmica) nos impõe fatalmente.
Em seu poema clássico O Guardador de Rebanhos, Alberto Caeiro (heterônimo do poeta português Fernando Pessoa — 1888-1935) enfatiza sua libertação do jugo da vontade: “Não tenho ambições nem desejos/ Ser poeta não é uma ambição minha/ É a minha maneira de estar sozinho”.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 16/08/2018
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