A Vontade (IV)
Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal (Kant) Consciência. A ação consciente parece ser o fundamento que melhor se aproxima de uma compreensão daquilo que é a humanidade do homem, por demonstrar que sabemos que somos uma espécie distinta dentro desse universo de seres e coisas. A humanidade do homem resulta de uma construção do próprio homem. Isso corresponde entender que escolhemos ou rejeitamos as coisas que queremos ter e ser. Para isso, devemos lutar, decidir sobre a vida que desejamos levar. Isto é, a vida humana responde às decisões pensadas, porque ela é um dado de nossa consciência. Buscar a vida que queremos é agir conscientemente. A vida consciente de si, de sua direção dentro do social, se apresenta como algo indispensável em nós, uma espécie de um imperativo absoluto. A vida assim vivida, consciente de si, clama pela necessidade de um esforço permanente, sem o que ela, a vida, não se realiza de modo ativo, onde cada homem se reconheça sujeito de suas ações. Há um canto de glória nessa tese: vivemos porque decidimos viver, seremos aquilo que resolvemos ser por nossa conta e, puramente por nossa conta, realizamos um quotidiano de benefícios ou de desastres. Somos donos de nosso destino como teorizou Nicolau Maquiavel (1469-1527) em seu O Príncipe, escrito entre 1513 e 1516. É desse princípio de ação consciente, do homem construindo a sua própria vida, que surge a ideia de um mundo inteligível, mundo passível de ser compreendido no seu plano social, marcado pelo longo processo histórico, arquitetado por nós mesmos, lugar de origem de modos de vida, gostos e interesses múltiplos, similares e contraditórios. Pensar e conhecer aqui, nesse social humano, ganham distinção e seus significados nobilitam-se. Pensar na existência, nesse vasto campo social formado ao longo dos séculos, com suas conquistas e revés, pensar nas esperanças realizadas e nos sonhos, muitas vezes interrompidos sem compaixão, é pensar na existência de um mundo aberto ao saber. Conhecer esse mundo é dever que se impõe a cada sujeito, ainda que nos limites das possibilidades de cada um. Nesse entendimento, pode-se afirmar que é preciso conhecer para viver. E de tal forma o conhecimento ganhou importância que os estudiosos modernos falam que estamos vivendo uma sociedade do conhecimento. Não qualquer conhecimento, mas aquele conhecimento teórico distinto do conhecimento da vida cotidiana: Conhecimento surgido como produto dos códigos, regras e práticas das pessoas envolvidas em áreas especializadas de pesquisa e dos debates sobre conhecimento que se desenvolveram nessas áreas. (Durkheim) A vontade é substrato dessa convivência social, onde pensamentos e saberes ganham valor ao se tornarem práticas de vida — razão prática — como na expressão kantiana: “A vontade e a razão prática são a mesma coisa: só um ser razoável tem a faculdade de agir segundo a representação de leis, isto é, segundo princípios ou uma vontade...” (Immanuel Kant). O homem é um ser de vontade. Vontade que recusa aceitar qualquer determinação vindo de fora (vontade autônoma) ou vontade cativa, quando recebe passivamente a lei de algo ou de alguém (vontade heterônoma). Na vontade autônoma, pressupõe-se a existência de liberdade plena, sem o que a faculdade de agir nega essa própria vontade autônoma. Essa autonomia, nos assegura Kant, é possível, considerando que o homem se liberta inteiramente quando se apropria das regras, dos costumes, dos hábitos e da cultura e as considera lei de sua própria vontade. A lei, assim acolhida, ganha naturalidade para o praticante. A ideia, então, é agir por princípios, por valores que governam as condutas, tendo presente a nossa condição de “animal social”, como expressou o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.). Essa condição aristotélica leva o homem, em sua autonomia, a ser pessoa, indivíduo humano socializado e possuidor de status e papéis, e a ser membro do reino moral, a conquistar a plenitude de que fala Kant: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. Ter de agir para ser, é o que reclama Kant. Nessa condição, a vontade tem de querer algo e esse algo é o fim da vontade, desejo comprometido com a excelência de princípios que possam valer universalmente. Exemplo: Se quer ser bom aluno, estuda. Aí está o que Kant anuncia como uma lei moral, um imperativo categórico que vale para todos, é ...princípio de uma legislação universal. Vale acentuar que a lei moral, que determina a vontade, tem suas nuances. Circunstâncias variadas, elaboradas em face de complexidades histórico-sociais, colaboram para diferentes inclinações da vontade. A sociedade qualifica a vontade em positiva ou negativa. Existem vontades que resultam em estímulos de alegrias de viver, de conquistas da vida em bem-estar. Há, também, vontades que destroem, humilham, provocam danos irreparáveis. Como já dito antes, a vontade tem de querer algo e esse algo é o fim da vontade. Este fim último, objeto da vontade, poderá ser o bem ou o mal. A considerar que o homem, na perspectiva kantiana, é o fim de si mesmo, ele é sujeito da própria lei moral. O bem ou mal, que vier a produzir por suas ações, há de causar benefícios ou danos ao próprio homem. Neste particular, Kant acentua: “Como a ação moral tem que ser realizada no mundo, a lei moral nos impõe o dever de tornar esse mundo adequado aos supremos fins morais”. A questão que se apresenta é reconhecer o que é o bem e o que é o mal. Para entender essa questão, primeiramente, é preciso dizer que o bem e o mal não têm existência objetiva são valores, entes naturais, produtos humanos dotados de uma história. Esses valores são qualidades impressas no modo de agir (bem ou mal), determinado por uma vontade. Isso significa dizer que os valores são interpretações sobre formas de vivência ajustados a uma história, a tempos e circunstâncias em que todos nós nos envolvemos. Esses valores não têm validade universal. Ao contrário, eles são válidos apenas em um contexto específico, no quadro de uma cultura determinada. Vivendo, construímos nossa humanidade, ganhamos consciência de que somos sujeitos dos modelos de ação (lei moral). Vivendo, adquirimos potência e liberdade para decidir. O conhecimento presente nesse modelo consciente de viver depende da vontade para se concretizar como ação. Dito doutro modo, na genialidade do poeta Fernando Pessoa (1888-1935): Não importa se a estação do ano muda... Se o século vira, se o milénio é outro. Se a idade aumenta... Conserva a vontade de viver. Não se chega a parte alguma sem ela. Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 16/08/2018
Alterado em 01/11/2018 Copyright © 2018. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |