Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

O Riso
 
 
Alegria.
Pesa no ombro humano um condicionante para se viver: o trabalho. O trabalho cotidiano é um dever e um fundamento, por ser a atividade afirmadora da vida, que instaura o caráter social.
Essa determinação de ter de trabalhar traz em si a obrigação de ter de descansar. O descanso não deve ser concebido como o fim último da vida, mas não deixa ser necessário para a vida; mais precisamente, ele é um meio para possibilitar o bom exercício de uma atividade de manutenção da vida.
O descanso deve acontecer pelo trabalho e no trabalho. Nesse sentido o descanso é mais do que o simples repouso, ele deve ganhar o sentido de bem-estar, prazer, deleite, encanto, modelação de um corpo de alegria.
O riso surge dessa composição da alegria de viver, porque o indivíduo está conseguindo desfrutar de um bem-estar a partir de suas próprias forças, garantindo um domínio do meio natural adaptado e relativo às suas necessidades. O riso não é só a gargalhada, esta é apenas uma de suas feições. O riso, sobretudo, é moderação, aceno leve da composição de um rosto suavemente contraído, um olhar cintilante, reproduzindo sentimento de júbilo dominando a alma.
Nesse sentido, o riso é síntese do espetáculo da vida em ação. Sua presença não se reserva a um momento posterior depois da luta, como se fosse um prêmio final pela vitória. Claro que o riso está nesse final vitorioso, mas ele vale mais porque comparece no cotidiano e deve ser acolhido e tratado como essência da ação em andamento.
O cotidiano, esta ação diária realizada na busca da construção de objetivos, tem seu próprio mérito, fazê-lo bem hoje, no cumprimento de um plano, causa contentamento e o riso comparece. É nesse somatório de realização e prazer diário que a alegria e o riso se fortalecem e criam a necessária resistência para o enfrentamento das contraposições.
O riso está presente no tempo histórico como tudo no mundo social. Ele é universal, como se pode ler no final de um pequeno poema do monge franciscano François Rebelais (1484-1553):
 
Ao ver as aflições que os consomem;
Antes risos que prantos descrever,
Sendo certo que rir é próprio do homem.
 
O riso é universal, “é próprio do homem”, mas seu modo de esboçar-se, enquanto gesto, hábito, rotina, ganha a pluralidade das múltiplas culturas disseminadas por toda parte, tornando-o uma espécie de gesto social.
Há aí um duplo aspecto do riso. O homem ri, esboça alegria ao sentir algum tipo de prazer, por força da materialidade que se impõe: “rir é próprio do homem”. Essa é uma feição. A outra é a cultural. A experiência levou o homem a desenvolver um grau significativo de argúcia e isso se tornou a principal capacidade para a ação. É aí, submetido à influência da esperteza culturalmente condicionada, que o riso ganha o colorido do espaço e tempo de origem e se faz diferente de sociedade para sociedade, de indivíduo para indivíduo.
Essa diferença da expressão do riso, caracterizado no gesto, hábito e rotina, aponta para a existência de seu reverso, a seriedade. O longo período de influência da Igreja Católica medieval (do século V ao XV) deu um tom sério à ideologia oficial, o que equivale dizer, “o riso foi expulso do culto religioso, do cerimonial feudal e estatal”, conforme os estudos do filósofo e antropólogo russo, Mikhail Bakhtin (1895-1975). Justamente por isso, o riso, fora da esfera oficial, assume uma significação positiva, regeneradora, criadora e se mostra, em rebeldia e fecundidade, na praça pública, durante as festas, na literatura recreativa.
Contrariamente ao sério oficial, autoritário, associado à violência, que incutia o medo e as intimidações, o riso demonstra que o medo foi dominado, ou como afirma Bakhtin, “O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso”.
Essa linguagem do riso emancipado chega ao Brasil e toma conta de nossa alma. Um exemplo é a marcha-rancho de Zé Kéti (1921-1999) — Máscara Negra, composta em 1967:
 
Tanto riso, oh quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
Alterado em 06/09/2018
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