O Corpo
Mistério. Somos mais do que um corpo: cantamos, choramos, alegramo-nos e nos entristecemos. Mistério: olhar a vida, ver o mundo, desejar e querer. Esse é um exercício de um corpo que pensa, se modifica, se encanta ou se alarma. Corpo que se ilumina e, em esplendor, ilumina o outro. A grandeza pode ser irradiada gratuitamente. A vida é aqui uma questão de vontade, de desejar ser e querer ser, ou como expressou André Comte-Sponville (1952): A vontade é um desejo em ato; o desejo, uma vontade em potência. Esses fundamentos, advindos da ideia do conceito de vontade em Sponville, delineiam um perfil do que somos. Somos quem somos porque mais do que desejar ser, pura intenção da alma, queremos ser, agimos para nos transformar naquilo que foi lembrado pelo desejo, esse princípio da ação que pede arrebatamento, força, ímpeto para querer ser. Nem todos nós alcançamos essa virtude de poder animar o corpo à busca de encantos em si ou alhures. Busca em que comparecem a reflexão e a ação e não dispensa a estética, o encontro com a feição bela da vida, como a alegria promovida pela Arte. É importante lembrar: a vida vale pela alegria que é capaz de produzir. Há, sim, um colorido no mundo que dá sentido à vida. É preciso perceber neste mundo algo que seduz, que cativa, que seja capaz de produzir prazeres. Sem isso, a vida seria morna. E ela, a vida, fica mesmo sem brilho, monótona, morna, quando impedida de ver, de usufruir os afetos surgidos da lucidez de ações promotora de bem-estar, da vida boa, a exemplo dos direitos conquistados pela sociedade presente. Escapar das noites. Fugir dos impedimentos da vida morna é encontrar em si o ímpeto para desejar, querer e agir. E como isso reluz quando determinado pelo querer ser, o sujeito sai do exclusivismo e alcança a convivência, gesto que indica o nascimento do humano no homem. A descoberta que importa é que, na convivência, somos aquilo que queremos ser nos afetos, naquilo que transforma meu corpo. Podemos ser sinceros, corajosos, magnânimos, mas podemos ser a besta fera, mentindo, roubando, exercitando a covardia mais desprezível. É a escolha. Escolher é decidir o que melhor vale para viver, considerando a experiência do real, chão objetivo das práticas sociais. Vida que vale a pena ser vivida é deixar-se invadir pela atmosfera revelada pela arte. Lá estão as cores, a sonoridade e a harmonia presentes nos cantos e na leveza da dança a enriquecerem a percepção e surpreenderem-se como origem do conhecimento. Vida leve. O infinito à frente é apenas rumo. A vida vivida é a do conhecimento que explica, que compreende, ainda que haja aventura. A aventura é elemento da inquietação do conhecimento que abre frestas ao novo mundo, possibilidade de novo modo de existir. Que novo mundo se busca, se deseja? O mundo da alegria. O afeto da alegria é o reflexo do corpo em fascínio. É a eternidade na finitude. É o desejo que o momento nunca se finalize. Dito doutro modo, na expressão de Espinosa (1632-1677): O desejo de saber, o desejo de viver feliz, de viver e agir bem, é a própria essência do homem, é o esforço pelo qual cada um procura conservar o seu ser. Mas, a vida individual se esvai após o percurso através de caminhos serenos e tortuosos. Um mistério profundo envolve o corpo que pensa. É o fim (ou é novo recomeço?). Aparecem, em relevo, o Céu cristão, o Nirvana budista, a Ancestralidade do Candomblé.... É a eternidade fora do tempo, transcendência que foge da vibração existencial da convivência histórica. O absoluto se estabelece. Não há mais corpo andante, pensante, só o absoluto. Tudo se recolhe a um profundo mistério, o insondável. Resta a interrogação, fica a inexplicabilidade: onde o fim, onde o começo? É a pausa do corpo que pensa. É o silêncio da imaginação, na ausência do corpo em ato. Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
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