Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

O Prazer e o Desejo
 
 
Estar no mundo.
Surgimos num tempo e lugar por mero acaso. Somos, na individualidade, um acontecimento subordinado à lei das probabilidades. O nascimento seria mesmo um acaso, porque a fecundação, que gera o feto, é um verdadeiro prodígio, como se pode ler nas publicações científicas. Quando um homem e uma mulher têm relações sexuais, o homem ejacula cerca de 3 a 4 centímetros cúbicos de esperma, o que equivale a mais ou menos 300 a 400 milhões de espermatozoides. Na corrida dos espermatozoides, em regra, um deles encontra o óvulo libertado de um dos ovários da mulher e o fecunda.
Esse milagre da fecundação se reproduz na vida social. Entramos no mundo num tempo e lugar que não escolhemos. Surgimos apenas. Não somos sujeito da ação. O mundo vem para nós de modo indeterminado.
Entramos no mundo pela porta da indeterminação e nos tornamos sujeitos sociais que passam gerir a vida na dependência de contingenciamentos de tempo e espaço. A vida em todo seu percurso, da infância à velhice, será condicionada por eventualidades e incertezas, daí a necessidade do cuidado para viver, daí a necessidade da apropriação dos saberes do mundo, num reconhecimento de que cuidar é conhecer ou, dito de um modo mais puro, como o fez o teólogo Leonardo Boff (1938): “Sem cuidado deixamos de ser humano”.
É na experiência alcançada, a partir da vida vivida, que cada pessoa vai assumindo o domínio de si mesmo. Vai encontrando modo de agir, em conformidade com a sua capacidade, para criar e resolver episódios da vida ativa, ampliando sua aptidão para compreender, julgar e tomar decisões.
Com esse instrumental da razão, caminhamos no mundo à procura de encontrar um bom modo de viver e de conviver. Estão presentes nesta busca, uma prática de vida e uma intenção, meios e fins entrelaçados, sabendo um do outro, numa espécie de vida em comum, como uma simbiose em que benefícios de um alimentam o outro e vice-versa.
O prazer e o desejo surgem como vibração dessa demanda de viver e de conviver.
O prazer é tomado como um bem, respondendo por uma vida vivida em plenitude, em que sua potência seja um esplendor de alegria e de sabedoria, a impedir que contratempos empobreçam o trajeto em busca da aquisição de virtudes, esse lugar do entendimento e da divergência em diálogo, a criar novos rumos, novos mundos e a retirar do silêncio grandezas ainda não contempladas.
O desejo se constitui como sendo um ato consciente daquele que decide fazer algo, condicionado a questões de cultura, que filtram o olhar e identificam os valores como bons ou maus.
Nessa compreensão, o prazer é parte natural do desejo, tendo a alegria como moldura. Sendo assim, o desejo sonha o prazer, presume, quer o prazer. Somente nos casos de psicopatias é que o desejo ambiciona o mal, a tristeza.
Esses saberes estão na base das reflexões do velho mestre Aristóteles (384-322 a.C.), como se pode ler na tese de 2011, defendida na USP pela professora Juliana Ortegosa Aggio:
 
A ética aristotélica pressupõe a seguinte tese: o desejo pelo 
prazeroso e o desejo de enfrentamento da dor devem poder
se orientar pelo que julgamos ser verdadeiramente um bem;
caso contrário, a educação moral não seria possível e já não
poderíamos falar em termos de aquisição da virtude.
 
Fica entendido que o interesse posto é ter bons desejos, é organizar-se de tal forma para que a disposição seja sempre bem desejar. Aristóteles está afirmando que há necessidade da realização da educação do desejo. O investimento nessa direção é de cada um, em face da historicidade de que a pessoa é envolvida, independentemente de seu querer.
Outro filósofo que apresentou, também, uma contribuição extraordinária para a importância do prazer foi Epicuro (341-270 a.C.). É dele o conceito de prazer como vida boa: “Se a vida é só presente, que o presente seja de prazer e prazer”. Nessa afirmação de Epicuro, entende-se que nada tem importância, nada tem valor se não se relacionar com a possibilidade da melhor maneira de se viver. Claro que ele põe os devidos limites a este prazer. O prazer deve ser natural e necessário. Um exemplo: alimentar-se é natural e necessário. Tomar um sorvete com baunilha de Madagascar, com gotas de cacau da Venezuela e uma folha de ouro comestível de 23 quilates, por 1.000 dólares, já não é natural, nem necessário.
Essa relação de prazer e desejo é bem instável, porque ganha o colorido do tempo e do lugar dos sujeitos da ação, mais do que isso, Paul Bloom, professor e pesquisador norte-americano em psicologia e ciência cognitiva, em texto de 2010, afirma que, ao sentirmos prazer, respondemos a coisas mais profundas do que gosto, cheiro ou aparência. Na verdade, diz ele: “nosso prazer é guiado pelo que sabemos, ou julgamos saber, sobre o objeto ou a pessoa com os quais interagimos”.
Modernamente, o pensador francês André Comte-Sponville (1952-), 24 séculos depois de Epicuro, sustenta a tese de que “Não é preciso crer no amor para ter uma ereção. O inverso é que é verdade. O sexo existe antes e inventa os sonhos de que necessita”. Na lembrança de Epicuro, pode-se afirmar que o gosto, o cheiro ou a aparência respondem a uma aprendizagem do corpo adquirida na vivência no mundo. Desejar, assim, vincula-se a uma outra capacidade do homem, a razão, esse modo de conhecer e perceber o que acontece, justificando-o. A racionalidade, resultante de diferentes experiências, construídas em tempos e espaços diversos, é símbolo de nossa humanidade. O desejo e o prazer respondem a essa racionalidade.
Mas é preciso observar que o prazer é um sentimento, ele não existe em si, não é uma coisa, é um estado afetivo, uma emoção. É uma espécie de qualidade implícita numa prática, numa ação. Exemplo: sentimos prazer numa caminhada, no ato de alimentar-se, no trabalho cotidiano. Essas atividades podem ser exercitadas com alegria, com encanto. Tem-se, então, um prazer nesse exercício. A lógica aristotélica aí é que o objeto do desejo não é o prazer, é a atividade que deve se revestir de prazer. Nessa perspectiva, funda-se a moral de um tempo, aquele em que a alegria de viver está em encontrar um espaço adequado para uma ação alegre, prazerosa. É um prazer revestido de um sentido positivo, ou seja, um prazer virtuoso, o que, em Aristóteles, significa um modo de conduzir o homem ao Sumo Bem, ou seja, à felicidade.
O desejo e o prazer, refletidos há 24 séculos atrás por Aristóteles e Epicuro, podem ser tomados, vigorosamente, como fundamento de vida nos tempos modernos: todos queremos um mundo de encantos, ali onde o sublime se torna regra e a tristeza compareça como exceção bem rara no processo de viver.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras