A Carta De Caminha (I)
O mundo da palavra. A palavra é filha do tempo porque reproduz o sentimento daquele que fala. O sujeito do discurso detém a experiência de seu tempo e a manifesta nos seus atos ao falar, escrever, pintar, trabalhar e ao se relacionar com os demais. É nesse sentido que se pode entender a expressão do pensador espanhol, José Ortega y Gasset (1883-1955): Eu sou eu e minha circunstância. Pero Vaz de Caminha (1450-1500) quando assinou, em 1º de maio de 1500, a sua carta ao rei D. Manuel I (1469-1521), comunicando-lhe o achamento de novas terras ao oeste da África, deixou a marca de seu tempo na graciosidade do texto. O Brasil nasce nesse relato de Caminha. Temos nessa narrativa a feição do século XVI. É a presença oficial do Império português na Terra da Vera Cruz (cruz verdadeira): Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. (Carta de Caminha) Caminha trazia em sua alma os anseios de um momento europeu de grandes transformações. O século XVI vivia os momentos finais de uma transição das artes plásticas, da arquitetura, das letras e, também, da organização política, religiosa e econômica da sociedade medieval (período da história da Europa entre os séculos V e XV). Portugal acolhe com entusiasmo as preocupações com a conquista material esboçada nos interesses das grandes navegações, mas permaneceu fiel ao catolicismo medieval e suas implicações da obrigatoriedade da fé. Pero Vaz de Caminha sintoniza em sua Carta essas duas preocupações: a conquista material e a espiritual: Águas são muitas; infindas. [A terra] é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (Carta de Caminha) A carta de Pero Vaz de Caminha tem mesmo o papel de memória fundadora da história do Brasil. É um documento privilegiado que, ao inaugurar a memória da nossa nação, festeja nossa riqueza e exalta às possibilidades de fazê-la portuguesa: Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. (Carta de Caminha) Percebendo esse interesse de tornar portuguesas as terras achadas, Chico Buarque e Ruy Guerra brincam com a ideia retratada por Caminha, ao criar sua poesia “Fado Tropical” — 1972/1973: Oh, musa do meu fado Oh, minha mãe gentil Te deixo consternado No primeiro abril Mas não sê tão ingrata Não esquece quem te amou E em tua densa mata Se perdeu e se encontrou Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal. [...] Pero Vaz de Caminha, ao registrar suas impressões sobre a terra nova, exaltando sua flora, fauna e gente, inaugura uma literatura informativa e lírica. No lirismo, a elegância de estilo, a fidelidade, a discrição e a reverência aparecem, o que faz o texto da Carta ganhar sabor de poesia: E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo. (Carta de Caminha) O Brasil nasce nesse desejo da ampliação imperial portuguesa, sob o manto do capitalismo mercantil e a justificação da expansão da fé. Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
Alterado em 27/08/2018 Copyright © 2018. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |