A Carta de Caminha (II)
A visão do presente. O olhar humano é sempre filtrado por um sistema de ideias (crenças, tradições, princípios e mitos) independentes, sustentadas por um grupo social, o que racionaliza e defende os próprios interesses e compromissos: morais, religiosos, políticos, econômicos. O Portugal de 1500 era um estado católico e reconhecia o poder da Igreja. Participava da esquadra de Cabral o padre frei Henrique de Coimbra, que rezou a primeira missa na nova terra, em 26 de abril de 1500. A carta de Caminha não nega sua temporalidade. O Estado tem seu objetivo econômico e não esquece o outro dever, o de conquistar almas para o catolicismo: Quem sabe desses infantis visitantes guardarão tão profunda impressão do que ali observaram, que ainda um dia virão por ele atraídos fazer parte de nossa comunhão nacional? Em face de seu domínio de tempo diferenciado, o escrivão Pero Vaz de Caminha atribuía uma inocência aos nativos, como a dizer que facilmente poderia moldá-los ao jeito português de viver: A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto... Nessa doçura de estilo, Caminha reafirma a presença do conquistador ao demonstrar a superioridade portuguesa sobre essa gente não conhecida, que parecia tola ao olhar quinhentista: “[...] do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e, por isso, tão esquiva [...]”. Nesse momento, a visão da nova terra era feita das caravelas. Era um olhar da distância que nada sabia sobre o outro e tomava seus costumes portugueses como sendo melhores do que aqueles praticados pelos nativos. Os sinais de diferença demonstrados pouco importavam, pois todos eram “gente bestial de pouco saber”: Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, farteis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. A Carta de Caminha, ao dar indicações da existência de uma nova gente, numa terra ainda desconhecida, simboliza a expansão imperial portuguesa em busca da sustentação econômica. E é por isso mesmo que Pero Vaz de Caminha, na qualidade de funcionário da Coroa, a serviço do Rei, está comprometido com o processo civilizatório do projeto português: [...] dando notícia do achamento desta Vossa terra nova, que agora nesta navegação se achou, não deixarei de também eu dar minha conta disso a Vossa Alteza, fazendo como melhor me for possível [...] O interesse maior é posto em primeira linha: “[...] notícia do achamento desta vossa terra nova”. Caberia agora o desenvolvimento de uma pedagogia de colonização. Mais do que simplesmente admirar a formosura do espaço e de seus habitantes, impõe-se agora a dominação. É preciso imprimir no novo mundo a “civilização dos costumes” portugueses: E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se farão cristão e hão de crer na nossa santa fé [...] As raízes de nosso Brasil vão se instalando a partir dessa presença de Caminha e com elas um bem querer à terra nova vai se ampliando e tomando conta da nova gente que aqui vai ocupando novos espaços e mais tarde ganha uma consciência nacional. Estamos nos tornando brasileiros: A historiografia brasileira vem atribuindo a carta de Caminha o papel de memória fundadora da história do Brasil, constituindo-a no próprio suporte físico de uma memória capaz de fundamentar certa identidade nacional. (Maria Elisa Noronha de Sá Mader) Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
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