Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

O Corpo e a Cultura na Carta de Caminha
 
 
Pero Vaz de Caminha (1450-1500), o escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral (1467-1520), inicia sua carta ao rei D. Manoel I (1469-1521), datada de 26-04-1500, nos seguintes termos:
 
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
 
 A carta de Caminha é um texto de época. Suas informações foram recolhidas e analisadas à luz das perspectivas e valores europeus, portanto, com forte etnocentrismo, tendência para considerar a cultura do seu próprio povo como a medida de todas as outras, importa dizer que não reconhece a validade de outras práticas e costumes como adequados, no que devem ser corrigidos, isto é, Caminha, ao reproduzir o olhar quinhentista sobre os habitantes da nova terra, espanta-se com as diferenças. Estão em jogo as perspectivas e julgamentos marcados pelos códigos culturais europeus da época. A visão é de que tudo merece ser readequado.
A carta de Caminha é um testemunho do encontro com o Outro. Gentes desconhecidas inteiramente, “de pouco saber, incivilizadas, que devem ser salvas:
 
Águas são muitas; infindas. [A terra] é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.

A par desse olhar, os habitantes da nova terra era “um povo sem fé, nem lei, nem rei, como destaca mais tarde o historiador e cronista português, Pêro de Magalhães de Gândavo (1540-1580), em seu relato “História da Província de Santa Cruz”. Gândavo esteve no Brasil entre 1558 e 1572.
Sustentado nesses códigos culturais portugueses, Caminha descreve, em detalhes e à distância, aquilo que é possível perceber enquanto dado material, objetivo. Não existe ainda a preocupação sociológica de querer entender aqueles gestos e aquelas ações como um sistema, como estrutura organizada capaz de colocar cada indivíduo como membro de uma rede de relação com papéis específicos a compor um grupo, com suas formas de viver, agir, sentir e pensar coletivamente.
É por isso que Caminha, em boa parte de sua carta preocupa--se com corpos:
 
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura [...] Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas.
 
Essa imagem do indígena brasileiro que foi transmitida à Europa no século XVI é a figuração de uma coisa, como se descrevesse a fauna e flora que Caminha e tantos outros viajantes fizeram no período colonial:
 
[...] há muitos passarinhos de grande formosura e variedade e em seu canto não dão vantagem aos rouxinóis, pintassilgos, [...] e fazem uma harmonia quando um homem vai por este caminho, que é para louvar ao Senhor – Padre José Anchieta (1534-1597) – chegou ao Brasil em 1553.
 
Na carta de Caminha, o corpo do indígena brasileiro foi olhado na sua concepção de corpo físico, sem nenhuma reflexão sobre corpo social do grupo a que pertence, o grupo indígena. Este corpo social é que condiciona as experiências físicas, como que autorizando o modo mais aceitável de apresentar-se. Caminha simboliza bem essa questão:
 
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulhermoça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir [...]

Preocupados em salvar essa gente, mal sabiam os invasores portugueses que Não Existe Pecado ao Sul do Equador, como canta Chico Buarque (1944):
 
Não existe pecado do lado de baixo do equador / Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor / Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho / Um riacho de amor / Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo / Que eu sou professor.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 17/08/2018
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