Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

A Poética da Cidade
 
  
Canavieiras
Bete Salgado
Todas as casas arrumadinhas:
Verdes-amarelas-brancas-lilás-azuis
Umas coladas às outras
Num ritmo só organizadas
Janelas-porta-janela-portas-janelas-jardins
— Bom dia! Diz o vizinho ao lado
— Olha o quebra-queixo! Grita o outro
— Tem barco saindo prá Belmonte!
— Boa tarde! diz o estudante.
Todos parecem felizes:
Crianças brincam na praça,
Adultos conversam animados,
Jovens namoram e proseiam
idosos sorriem e se divertem.
Num mesmo espaço convivem
Na plana cidade sem pressa
Banhada pelo rio e pelo mar
Abençoados por São Boa Ventura
todos parecem contentes:
Vive o povo feliz em Canavieiras!
 
A poetisa Elizabeth Salgado de Souza é professora da Universidade Estadual de Santa Cruz — UESC. Sua alma se purifica dentro da academia, no diálogo com a juventude, mas seu olhar não se subtrai a limites de muros ou recantos, porque alcança a dimensão da vida em ação. Voa! Ela vê o invisível, reconhece grandezas e traduz o indizível das coisas simples numa palavra, num ritmo; sereno no momento, explosivo noutro.
Não é aqui neste artigo que toda a beleza comunicativa do poema Canavieiras se revela, ele se torna esplêndido é no modo doce como Bete Salgado o declama. A voz compassada, palavras e gestos serenos pintam o texto de uma musicalidade que responde ao riso, ao encanto que acaricia, afastando a dor para abrigar o deslumbramento, ou, como diria o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) quando refletiu sobre o pintor francês Paul Cézanne (1839-1906): “[...] artista é aquele que fixa e torna acessível aos demais humanos o espetáculo de que participam sem saber”.
Quantos de nós já não zanzamos pelas lisas pedras dos calçamentos das ruas de Canavieiras? Lá estão suas esquinas, seus casarios, seu porto alongado às margens do Rio Pardo, que logo beija o mar. Há ainda os saveiros, as canoas a navegar. Para uns, são apenas ruas, casas, rio e mar; para os poetas, canto, encanto, recanto, ângulos que remetem a pensar.
Nessa inspiração, quando a voz que declama extasia-se, é a alma que se deleita. Quando a poesia nasce, é o mundo que se desvela em cores, formas, harmonias, sensibilidades, tudo desperta. É o belo se mostrando pela arte independentemente dos vícios da finitude, apesar de todas as condições concretas e adversas da existência.
A cidade de Canavieiras está ali no poema, não por seus contornos geográficos a apontar seus eixos de norte e sul, mas pelo transitar de almas: “Bom dia! Diz o vizinho ao lado/ Olha o quebra-queixo! Grita o outro/ Tem barco saindo prá Belmonte!/ Boa tarde! diz o estudante”.
Entrar nesse mundo encantado e misterioso somente é possível através da poesia, somente a poesia descortina o sublime, ali onde reside o esplendor do mundo, acima das contingências, mas não fora das muralhas onde se processam os embates. É mesmo neste mundo histórico, de vastas contraposições, que o sublime é elaborado pelas vontades emanadas das consciências que enriquecem a existência humana:
 
Crianças brincam na praça,
Adultos conversam animados,
Jovens namoram e proseiam
idosos sorriem e se divertem.
Num mesmo espaço convivem
Na plana cidade sem pressa.
 
Atenção! A arte não é bela em si, a beleza não germina de uma genialidade exterior. A poesia, o quadro, a dança se fazem belas por sua capacidade de despertar sentimentos adormecidos, ao calar no modo artístico temores e esperanças, ânsias e preocupações: “Abençoados por São Boa Ventura/ todos parecem contentes:/ Vive o povo feliz em Canavieiras”.
Estamos em outros espaços, nas “Geografias solenes dos limites humanos”, como expressou o poeta francês Paul Éluard (1895-1952), não nos limites do sim e do não, que tudo decide; mas no reino da iluminação, nos terrenos da cartografia da alma que chora, ri, devaneia: “Bom dia! Diz o vizinho ao lado/ Olha o quebra-queixo! Grita o outro/Tem barco saindo prá Belmonte!”.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 20/08/2018
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