Antonio Pereira Sousa

"Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas." (Carlos Drummond de Andrade)

Textos

O Mar de Caymmi
 
 
Simplicidade.
De perto, reduzida à distância que incomoda, conhecendo--se bem os detalhes, tudo ganha brandura, mostra-se por inteiro naquilo que mais caracteriza, mais individualiza. É como se no simples a morada da alma se revelasse, deixando as unidades de sua composição se mostrarem sem reserva, sem vaidade. O que parecia complexo perde sua circunspeção, sua sisudez e se torna amigável, reconhecível num primeiro olhar, pois é na simplicidade que a beleza do ser se manifesta: “O mar quando quebra na praia/ É bonito, é bonito”.
Dorival Caymmi (1914-2008) foi considerado um dos maiores compositores da música popular brasileira e tem entre seus inúmeros trabalhos musicais (104 sucessos) as canções “O Mar, Promessa de Pescadores” e “É Doce Morrer no Mar”.
Cantar o mar, sentir o mar, viver o mar.
Esse foi o modo como Caymmi venerou as águas. A água é um dos elementos primordiais que deu origem a todas as demais coisas, quando combinados com o fogo, o ar e a terra.
Na tradição umbandista das religiões afro-brasileiras, cada um desses elementos é controlado por um Orixá. Iemanjá é a mãe das águas. Iniciar o cântico “Promessa do Pescador” saudando Iemanjá, é pedir licença e inspiração para reconhecer a grandeza que está presente no mar: “Alodé Iemanjá odoiá!/ Alodé Iemanjá odoiá!”
Cantar é revelar sons, é pensar para além dos conceitos, pois na arte, os valores se mostram segundo as sensações que o artista consegue criar. Quando ele fala por meio de sensações de seus acordes e harmonias musicais, ele está a dialogar com o mistério, com o enigma ainda não decifrado pela palavra pura:
 
O mar... pescador quando sai
Nunca sabe se volta, nem sabe se fica
Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos
Nas ondas do mar.
 
Em Caymmi, o mar ganha consciência e ausculta vontades humanas e, ao mesmo tempo em que é fonte de vida, de quando em quando, atrai para seu insondável domínio um ou outro pescador:
 
Pedro saiu no seu barco
Seis horas da tarde
Passou toda a noite
Não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco sem nada
Num canto bem longe lá do arraiá
 
Caymmi, ao falar com o mar, sabe que Iemanjá lhe ouve. Formosa e vaidosa, a Rainha dos mares, nas noites enluaradas, sai de seu reino encantado nas profundezas do oceano e vem à superfície entoar seus cantos maviosos.
É para esse reino das profundezas do oceano que vão aqueles que morrem no mar e por isso o carinho e a confiança de Caymmi: “É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar”.
Mais do que alegorias, fantasias, fábulas, o mundo desses cantos tem existência real para quantos navegam no mar em pequenas embarcações, simples saveiros a vela, tocados pela força do vento:
 
Senhora que é das águas
Tome conta de meu filho
Que eu também já fui do mar
Hoje tou velho acabado
Nem no remo sei pegar...
Tome conta de meu filho
Que eu também já fui do mar.
 
Considerando que a água, fogo, o ar e a terra combinados formam tudo que existe, cada pessoa tem em si esses elementos e pode se afeiçoar com mais ou menos intensidade a cada um deles. Apegar-se ao mar, envolver-se em seus mistérios, é aproximar de seus encantos, é aceitar as divinizadas luzes vindas da doçura de Iemanjá: “Alodé Iemanjá odoiá!”.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 20/08/2018
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